A FÉ QUE SALVA DA INSANIDADE
—–Original Message—–
From: CONTINUAÇÃO: MÃE GANHOU E PERDEU A FILHA NUMA PROFECIA
Sent: sexta-feira, 26 de dezembro de 2003 02:18
To: [email protected]
Subject: POR QUE, MEU DEUS?
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Mensagem:
Querido Caio:
Meu terapeuta sugeriu que eu continuasse escrevendo para você. Apesar dos medicamentos receitados o sono não vem… Já é tarde da noite. Vejo as outras casas, luzes apagadas: Testemunhas de que o sono é tranqüilo, ninguém está longe. É a lonjura que dói. Vi hoje à tarde crianças correndo, brincando felizes. No meu silêncio estou dizendo: “está tudo mal”. Estou triste, separada de um pedaço de mim mesma. Por todos os lugares uma neblina triste envolve a beleza, anúncios de solidão. Laura foi e eu fiquei, no vazio, com aquela sensação de perda. Ela não está mais aqui. O que há é muita saudade. Estávamos juntas, tudo perfeito e feliz com coisas de que gostávamos e de repente só lágrimas correm dos meus olhos. Me dá sempre uma sensação de um frio glacial, todos os cobertores, todas as lareiras, todos os sóis sendo inúteis, pois eles são bons para aquecer corpos.
Não tenho mais filha, não escutarei mais o “mamãe”.
Por quê? Quem faz essa pergunta se encontra diante de um enigma, algo que não entende. Não entende e dói. É preciso que o não entendido doa para que a pergunta brote. Fazemos a pergunta para diminuir a dor, para dar sentido à dor. Quem pergunta “por que?” deseja uma resposta. Quer uma explicação. Uma dor explicada é uma dor que dói menos. Mas por que a minha única filha, criança ainda? Mas por que resolveu me deixar, partindo para o nunca mais? Todas as explicações são inúteis. Na verdade, o ” por que?”, aqui, não é uma pergunta. O “por que?” é um grito de protesto dirigido aos céus, um urro que surge das vísceras, que nenhuma resposta poderá explicar ou consolar. Grito que se grita diante da dor sem consolo. Não é justo que os céus estejam vazios, que não há ninguém que responda.
As religiões, todas elas, na medida em que as conheço, possuem respostas p/ a pergunta “por que?”. E as respostas que todas dão é a mesma. Diferenças? Nada mais que variações sobre o mesmo tema. E o que todas dizem é que Deus é a causa da dor. ( não importam como elas pensam que Deus é) É Deus que nos faz sofrer. Sofremos porque Deus quer. Se ele não quisesse, não sofreríamos. Lembro-me de um hino que eu cantava e que dizia: ” Não há dor que seja sem divino fim…” se assim é, a dor é meio p/ os propósitos divinos. E se a dor é dada por Deus, temos de ser gratos por ela. O sofrimento é o avesso horrendo de uma tapeçaria cujo lado direito, maravilhoso, só Deus conhece.
Tem de ser assim? Tem de ser assim. É uma exigência da lógica. Deus tem de ser onipotente. Assim, tudo que acontece, acontece pela sua vontade. Se coisa houvesse que acontecesse à revelia da vontade de Deus, ele não seria onipotente. Perguntei a uma pessoa que veio ontem me visitar ” Por que Deus nos faz sofrer?” Ele respondeu que é por razões pedagógicas. O sofrimento nos torna melhores.
Não, não é verdade que o sofrimento torne melhores as pessoas. O sofrimento freqüentemente embrutece, tira a sensibilidade, tira a esperança, torna cruéis as pessoas.
Ouça meu grito. “Por quê?”
Por enquanto, é Natal, tudo continua às avessas, ao contrário, de cabeça para baixo, o dia ainda não amanheceu. É noite.
Resposta:
Minha querida irmã: Paz e Colo de Deus para você!
Seu conflito é mais que normal. Se Deus é bom e todo-poderoso, por que, então, coisas ruins acontecem com gente boa?
O problema é que este mundo é caído!
E mais: ele não funciona em relação aos humanos numa perspectiva de causa e efeito. Ou seja: se sou bom e faço coisas boas, como resultado nada de mal me acontecerá.
Mas não verdade. Não é verdade na Bíblia e não verdade na vida.
Nosso problema é que pensamos em Deus com categorias morais. Deus teria que tratar este mundo caído conforme nosso entendimento moral da existência.
Mas não é assim nem na Bíblia e nem na vida!
Mas para você entender isso um pouco melhor, antes de tudo é preciso pensar no significado de cada palavra relacionada à definição de uma Teologia Moral de Causa e Efeito.
Senão, vejamos:
1. Teologia:
Teo-logia pretende ser um “estudo lógico sobre Theos, sobre Deus”. O que é, em si, uma contradição de termos. Se há uma lógica divina não há mais espaço para a afirmação cristã de que o homem vive, naturalmente, uma total incapacidade de “discernir a Deus”. Pode-se conhecer a “tese revelada na Palavra de Deus”, mas a tentativa de estabelecer uma lógica-sistemática para o Logos, é infantilidade, tanto “teo-lógica” quanto “filosófica” e, muito mais ainda, “psico-lógica”.
Nossas hermenêuticas são, em geral, o fruto mais duradouro das perspectivas epistemológicas dos gregos, e, nesse caso, Aristóteles, deveria ser o para-ninfo de nossos estudos “teológicos”, especialmente, de suas “sistematizações”—quase todas heranças da Teologia da Terra que, entre os gregos, tomou a alcunha de “filosofia”.
Ora, uma “teologia” já é em si uma construção presunçosamente pagã. Na Bíblia não há “teologia”. Nela só existe “revelação”, e, sua sistematização, nunca foi e nem será verdade-verdade; pois, é, também, uma construção humana sobre o “revelado”. E mais que isto: chama Deus para caber na arquitetura dessa Catedral de Pensamentos Humanos que se erigiu para Ele “habitar”. Fica bem para Zeus, nunca para Deus!
2. Moral:
Moral é um acordo que pode ser tácito ou formalmente estabelecido por uma determinada sociedade humana. Moral é a fronteira que os humanos elegem para se “elevarem” uns dos outros e, sobretudo, para “diferenciarem-se” dos comportamentos que são marginais aos sabores, práticas ou entendimentos pessoais da maioria. Além disso, ela é quase sempre nascida no berço das hipocrisias das elites; sejam elas religiosas, políticas, econômicas, culturais ou filosóficas.
Na maioria das vezes, todavia, a Moral é simplesmente fruto natural da presunção virtuosa daqueles que se auto-definem como os reis do exemplo.
Ora, antes de haver Moral houve seres Moralistas. Estes são os filhos de Caim e de sua presunção de agradar a Deus por suas próprias obras. Mas fazem isto pela força de coação, e usam o seu poder a fim de impor um comportamento ou fabricar valores que são estabelecidos sobre os demais, e que, depois de um tempo, são aceitos como média, como maioria, como consenso.
Moral, também, é um fenômeno de natureza inconsciente e que se manifesta como a eclosão das vontades acumuladas no inconsciente coletivo, e que se derramam como chuva torrencial sobre cada geração.
Sua durabilidade não é longa. Varia de tempos em tempos, mas no tempo em que está vigente, torna-se um valor absoluto da maioria contra as minorias.
E esta é a ironia: minorias a impõe sobre uma maioria, e, depois, esse código se volta sobre as milhares de minorias, que, inconscientemente, “assinaram o acordo”.
Além disso, Moral é a hegemonia dos “conceitos de normalidade” que se transformam em instrumentos de juízo contra todos os diferentes: esses, em geral, são seres inexplicáveis e incompreendidos pela média e suas mediocridade.
Por isto, a Moral é o berço de todas as medio-cridades, pois, na média e na maioria não há criatividade e nem liberdade de ser!
As liberdades de ser e todas as conquistas dela decorrentes, sempre vieram dos marginais da Moralidade vigente. E isto é mais fácil de provar na Bíblia até mesmo do que no resto da História Universal. E por uma razão: Nas Teologias da Terra, onde se fundamentam as morais universais, não existe o conceito de Graça. Portanto, as normas legais de regulamentação das relações entre os homens, acabam sendo as mesmas que se usa para tentar regulamentar as relações dos homens com Deus.
Ora, quem crê que o ladrão que recebeu a revelação de que Deus em Cristo, na Cruz, e foi convidado a “viajar” de sua própria cruz para o Paraíso, o foi por uma única razão; isto é: porque o julgamento do homem contra aquele que quebra a Lei, não tem relação de Causa e Efeito na Presença da Cruz de Cristo—Sim! quem assim crê, entende o des-significado da Moral diante de Deus!
Sim, quem crê dessa forma não pode acreditar em nenhuma Teologia Moral. Isto porque aquele que era julgado pelos homens estava sendo, enquanto isto, justificado pela fé e sendo convidado a aceitar a quebra do carma humano, abraçando a Jesus, naquele mesmo dia, no Paraíso.
E aqui deve-se dizer que a Lei tem utilidade vigente muito maior que a Moral. Pois a Lei pode impedir o crime ou o punir uma vez realizado. A Moral, contudo, não serve objetivamente para nada além de provocar a presunção do juízo de um homem contra o outro, ou, de toda uma maioria contra uma minoria!
Assim, a Moral, como o termo já diz, é a norma da maioria, sendo, portanto, o Geral. Já a Lei funciona para determinar as liberdades e os limites dos encontros-horizontais. A Lei pode impedir a tirania. A Moral a cria! Ou seja: a Lei me proíbe de oprimir meu próximo. Já a Moral, tentar clonar todos os que queiram ser re-puta-dos alguma coisa numa dita sociedade moral e de aparências padronizadas. A Lei nos proíbe de não permitir o outro ser, desde que a expressão de seu ser não seja contra a liberdade do próximo de também ser. A Lei nos garante que essa liberdade vai apenas até ao limite em que sua expressão de ser não violente um outro ser humano. A Moral, todavia, nos impede de ser diferentes da maioria, portanto, mata a expressão do ser.
A Lei nos defende da tirania do próximo e vice-versa. A Moral, no entanto, dá ao meu próximo—e também a mim— o poder de julgar pela mediocridade—Moral é a “Lei da média”, portanto, é a Lei da maioria e da imagem, criada pela maioria para regulamentar a “normalidade” humana—, fazendo de mim ou do meu próximo, na melhor das hipóteses, um sobrevivente da mediocridade.
Portanto, quanto mais submissão à Moral, mais a mediocridade reina soberana, e mais a individualidade humana é des-conhecida. E isto acontece quando a Generalidade dos códigos da maioria é transformada em norma para uma espécie—a humana—, que não pode ser norma-tizada; e, por uma única razão: ela foi feita à imagem e semelhança de Deus, e, por isto, é uma espécie de seres singulares. Daí, aos olhos de Deus, o justo só pode ser-viver pela fé!
E aqui faço uma parada a fim de dar des-canso aos Leitores, pedindo-lhes que tenham paz-ciência. Todavia, para que não se des-esperem, os acalmarei dizendo aquilo que mais para frente neste livro será objeto de minhas considerações mais alongadas; ou seja: que a Moral só trabalha contra a própria santificação do ser!
É por essa razão que Paulo nos chama para uma vida sem Lei e sem Moral, que para ele eram apenas “rudimentos”. O convite do apóstolo, porém, é para que se viva uma vida cheia de Graça, Verdade, Justiça, Bondade, Alegria e Amor, pois, segundo ele, quem olha apenas para a imutabilidade da revelação, descobre logo que são apenas e tão somente esses valores de ser em Cristo, as coisas contra as quais não há lei.
De modo que a obediência ao evangelho é por fé entre os pagãos, mas não se trata de nenhum tipo de moralismo auto-virtuoso, que, no máximo, impressiona os que pensam com as mesmas categorias—os cristãos frágeis e os pagãos de consciência auto-glorificada—, mas que não têm nenhum valor diante de Deus, especialmente se tais virtudes pretendem diminuir a imerecibilidade da Graça.
Portanto, quem não vive e não crê na Graça—favor imerecido—, tem como única alternativa de experiência religiosa, o abraçar confiante e arrogantemente a Teologia Moral dos Amigos de Jó.
E tal “fé” não carrega fé, mas auto-confiança e serve apenas para “justificar a imagem” do homem perante os demais, mas não tem valor algum quanto a justificá-lo aos olhos de Deus, pois, “o homem vê a aparência, o Senhor, porém, vê o coração”.
Para os cristãos, todavia, na maioria das vezes, Moral é aquilo que praticamos a fim de não termos que nos “conformar com Cristo na sua morte”, e, assim, podermos desenvolver um modo externo de auto-justificação, pela via do comportamento exterior, de acordo com a Lei e seus “rudimentos”, e, assim, sem o desejarmos—por não sabermos que a verdadeira fé é que gera a verdadeira ética da liberdade—, nos entregamos justamente àquilo que elimina, no coração e na alma, a manifestação da única e verdadeira liberdade.
Ora, depois de tudo o quem já vimos, não dá para negar que toda forma de Moralismo—cristão ou não—, trabalha contra a apropriação da verdadeira liberdade.
O problema é que a afirmação de Paulo de que “todas as coisas são lícitas”, em geral, é vista como um estimulo á libertinagem e à total irresponsabilidade. Nesse caso, trata-se do oposto à auto-justificação pela Moral— mesmo para o cristão—, que é a fantasia de que “estando em Cristo”, nossa singularidade irrepartível e nosso senso de individualidade, deveriam implicar também em que nós somos, agora, livres para fazermos o que bem ou mal desejarmos. “Afinal, estamos livres da Lei e da Moral”—é o que pensam sem ainda terem entendido nada da real proposta de Jesus.
Mas que engano!
Estamos sim, em Cristo, livres da Lei e da Moral e de todos os seus subprodutos. Todavia, isto não nos põe no caminho da libertinagem. Antes pelo contrário, nos chama para o tipo de liberdade que Deus considera digno do conteúdo da palavra liberdade. Deus não se submete às “conotações” que as palavras ganham pelo seu uso. Ele chama de liberdade apenas aquilo que liberta e transforma o ser, conforme a imagem de Seu Filho.
A liberdade do homem tem na liberdade de Deus sua referência, pois, Ele é livre para ser continuamente bom, fiel, misericordioso e justo; e, sobretudo, para ser o Deus da Graça para outros.
Deus não precisa tratar-se a si mesmo com Graça. Ele merece! Nós, no entanto, somos livres na Graça para sermos imitadores de Deus como filhos amados. E a imitação em questão é a pratica da Graça com a qual Ele trata a todos, incluindo justos e injustos! E isto só é possível de se viver no nível do horizonte humano se a Moral não for a anima da nossa fé. Pois, pela Moral, não se trata a justos e injustos como o Pai recomenda a Seus filhos que o façam.
Portanto, não se en-feze antes da hora. E nem puxe a des-carga do pensar, pois, assim fazendo, você pode estar jogando para lugar escuso aquilo que deveria alimentar a sua alma e não o seu esgoto literário!
Leia com calma. Não há barganhas a fazer!
3. Causa e Efeito:
O problema é que se admitimos que há entre os homens a necessidade de Leis e Códigos que dêem ao convívio social certas seguranças, temos, também, que admitir duas outras coisas: a primeira é que quem crê em Cristo deveria saber fazer a diferença entre uma coisa e outra. Ou seja, nunca tornar alguém anátema—separado de Cristo—por nenhuma quebra de Lei, seja ela um código social, uma etiqueta, uma ética ou uma Moral. E por quê? Porque a experiência da fé em Cristo nos faz poder dizer que agora nossa escolha não tem mais nada a ver com o lícito ou ilícito, mas tão somente com aquilo que “me convêm” e me “edifica”. Em outras palavras, com aquilo que promove vida, saúde, justiça e paz ao coração. E, sobretudo, com o resultado de cada coisa na vida, incluindo os seus males, pois, muitas vezes, é do caos que o Espírito se move para criar!
A segunda razão é a seguinte: se usarmos o critério da Lei Moral—ou qualquer outra—a fim de julgarmos os homens em relação a Deus, estamos entrando numa rota de conflito duplo. Primeiramente porque somos proibidos de julgar a quem quer que seja em relação a Deus; e, em segundo lugar, por esta mesma razão, quando elegemos um critério de julgamento com o qual julgamos o próximo, estabelecemos o critério espiritual segundo o qual seremos julgados por Deus—e assim, caímos da Graça e nos colocamos sob os rigores da Lei. Isto porque quebrar um único mandamento da Lei nos torna réus de todos. E pior ainda, como o valor e âmbito de percepção da verdade da obediência à Lei, conforme Jesus, não são as exterioridades do comportamento, mas as verdades do coração, então, nos condenamos irremediavelmente sempre que julgamos.
Além disso, ao afirmarmos qualquer forma de salvação ou relação com Deus baseada nos princípios de causa e efeito, ilegitimamos a Cruz, a anulando, e tornamos o sacrifício do Cordeiro um luxo desnecessário, pois, haveria muitas outras formas de se tentar agradar a Deus.
Ora, Jesus veio ao mundo justamente para quebrar essa Lei, e instituir a Lei dos Favores Imerecidos, e que são obtidos pela fé, e que não se baseiam nas obras da produção humana por duas razões: uma é que nossas melhores justiças são, aos olhos de Deus, como trapos de imundícia. A outra é que se é pela Graça—favor imerecido—não poderia jamais implicar em qualquer forma de “barganha”, nem antes, nem durante e nem depois.
Quem ouviu Jesus bradar “Está Pago”—Tetelestai—“está consumado”—, não acha que sobrou sequer a obrigação de guardar a gorjeta para o garçom celestial. Agora, por causa da Cruz, o que se diz é: “Entrará e sairá e achará pastagem”.
Se deixarmos de lado o plano teórico e olharmos para o “pai da fé” veremos que a partir de uma visão integral do Velho Testamento torna-se impossível a “construção” de uma Teologia Moral de Causa e Efeito. Como já disse, honestamente, não é possível fazê-lo. Mas a desonestidade, a ignorância ou mesmo o auto-engano, sabem besuntar muito bem a verdade com mentiras.
Nas Escrituras encontramos Leis, mas também percebemos que sobre todas elas a Graça reina soberana.
Não é por acaso que quase todas as revelações da Graça no Novo Testamento vão atrás de suporte para a tese, que em Cristo se tornou explícita e dramatizada, nas declarações de fé dos homens e mulheres do passado; ou seja, na certeza da prevalência da Graça sobre o Juízo, para a “justiça de todo àquele que crê”.
Os valores afirmados no Antigo Testamento não são de natureza Moral, mas têm a ver com a verdade de ser, em fé, para Deus. Lá encontramos a inegociabilidade da Justiça, da Misericórdia, da Verdade e do Amor a Deus e ao próximo.
Aliás, Jesus resumiu tudo ao dizer que a Lei e os Profetas poderiam ser trazidos para dentro de uma única equação: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”.
Portanto, não se está falando em Moral mas em Verdade, Justiça, misericórdia, Amor e Graça!
Ω
Para simplificar o que estou dizendo, quero apenas que você faça comigo o seguinte exercício:
Em que grupo cristão de hoje Abraão seria o “pai da fé” tendo entregado sua esposa à autoridade superior —no caso, o faraó —, a fim de salvar a própria pele?
Ou ainda: seria ele o “pai da fé” tendo tido um “caso” con-sentido pela esposa, com sua in-pregada, a fim de in-pregnar nela um filho?
E mesmo que desejássemos tirar o “eixo” da questão do plano sexual para o da procriação, fica ainda a questão de que o bebê de proveta, Ismael, não foi gerado artificialmente: Abraão era o médico, o in-semem-na-dor com natural, o banco de sêmen, o médico, o marido e o pai. E Hagar, era a “proveta”. Ou, não era?
Ou ainda: o que dizer dele, Abraão, que após ter o filho com a serva, manda-a embora, juntamente com a criança, para fazer os gostos da esposa, agora enciumada, e que eram “gostos” que “vinham da parte do Senhor”?
Naqueles dias aquele ato era imoral, pois ninguém faria aquilo!
E hoje? o que a Moral re-comendaria?
Ora, mandar-se-ia a “outra” embora, mas não sem se “assumir responsabilidade pelo filho”. Portanto, tanto então quanto agora, Abraão seria “moralmente injustificável”.
Toda-via, Abraão e Sara tiveram um filho, seu único filho, a quem deram o nome de Isaque! O menino cresceu, e foi desmamado. Nesse dia em que o menino foi desmamado deu Abraão um grande banquete. Mas vendo Sara que Ismael, o filho de Hagar, a egípcia—e não era à toa que a “outra” fosse egípcia—sim! vendo Sara que Ismael, o filho da escrava, caçoava de Isaque, disse a Abraão: Rejeita essa escrava e seu filho; porque o filho dessa escrava não será herdeiro com Isaque, meu filho!
Ora, pareceu isso mui penoso aos olhos de Abraão, por causa de seu filho!
Disse, porém, Deus a Abraão: Não te pareça isso mal por causa do moço e por causa de tua serva; atende a Sara em tudo o que ela te disser: porque por Isaque será chamada a tua descendência. Mas também do filho da serva farei uma grande nação, por ser ele teu descendente.
Levantou-se, pois, Abraão de madrugada (e mal sabia ele que haveria ainda uma outra madrugada, muito mais absurda!), tomou pão e um odre de água, colocou-os sobre as costas de Hagar, entregou-lhe o moço, que agarrado ao seu lado estava, e des-pediu-se de sua serva, mãe de seu primeiro filho, embora não fosse o seu filho Primeiro.
Hagar saiu errante pelo deserto de Berseba!
Errante, toda-via, Hagar se casou mais com o des-tino de Abraão do que nunca, pois, só se é hebreu se se andar errante, cruzando as fronteiras invisíveis, conforme implica o conceito existencial de ser-se-fazer-contínuamente hebreu!
A imoralidade de Abraão em relação ao filho e à mulher que lhe tocava o coração con-dor, é curada pela dor da obediência, em fé, à Palavra-Voz-Silente que lhe dizia: “Não te pareça isso mal…”
Curado da culpa moral ele parece ter ficado, porém, só Deus sabe quando e se, em algum dia, aquele grito para dentro silenciou como dor em seu cansado coração!
Afinal, emocionalmente, era mal para Hagar, para Ismael e era também mal para Abraão! e seria também incompreensível e mal aos olhos de todos os seres responsáveis de qualquer era!
Mas Deus disse: “Não te pareça isso mal..!”
Donde se conclui que a fé que obedece ao Ab-surdo da Voz-Silente, contra o próprio desejo do ser e de ser, carrega em si uma ética superior e que lhe é imanente!
Mas que foi um ato “imoral”, isso a “maioria” não poderia moral-mente negar ainda hoje, especial-mente se o nome do homem não fosse Abraão, mas apenas “seu João”.
E quem pode diferenciá-los—digo: Abraão de “seu João”—olhando apenas as exterioridades, sem as vozes do coração, tanto de Deus quanto também de Abraão, e que se fazem ouvir na narrativa em questão?
Sem a fala do texto sobre a dor de Abraão e a compreensão-afeteiva do coração de pai e amante que aparece na fala de Deus, quem absolveria Abraão?
A solidariedade de Deus para com Abraão foi, toda-via, implacável quanto a não Abrir Mão de Sua Própria Vontade, conforme a narrativa — que não era apenas histórica, mas, sobretudo, psico-lógica e profeto-fato-ilógica!
Afinal, Deus e Abraão falavam em silêncio para a maioria, ou melhor: para todos!
É quando a Palavra de Deus para o indivíduo é silêncio absoluto de Deus para os de-mais, que são todos!
Deus tanto fala a todos, como fala a mais ninguém!…
Algumas vezes a Palavra de Deus para mim é silêncio de Deus para os outros. Então, sobram apenas as cenas, como de cinema mudo, onde apenas os mais sensíveis interpretam com um pouco mais de proximidade a verdade daquilo que aos sentidos aparece como ab-surdo!
A Palavra de Deus para Abraão acontecia como surdez para os que viam mas não ouviam a mesma Voz!
Por isto, entre-tanto, olhando-se apenas as aparências, sem as vozes do coração, não se poderia ver Abraão como o pai da fé, mas tão somente como um “seu João” qual-quer, e que, sem vergonha, andava negando a fé!
De longe, “seu João” jamais seria absolvido pela “fé dos cristãos”, à menos que ele fosse visto como Abraão—isto porque, mesmo sem compreendermos Abraão, ainda assim dizemos que ele é o pai da fé!
E assim é porque nos foi dito que é assim, mas poucos sabem porque assim é! De fato, para se saber, tem-se que não saber…toda-via, crer!
A fé, como loucura, só se estabelece como obediência à Voz contra todo o fluxo dos desejos pessoais! Do contrário, é capricho que se esconde no absurdo da fé!
Ω
A maior aberração moral de Abraão, entretanto, não vem dos ambientes das morais sexuais da época. De fato, o Grande Escândalo vem da fé e da devoção de Abraão, quando, sem consultar a ninguém, leva o filho, Isaque, para ser sacrificado à Deus e assassinado aos olhos dos homens.
Isto aconteceu no meio da noite, em profunda solidão, quando a Voz se fez ouvir. “Toma teu filho, a quem amas e oferece-o em sacrifício em um monte que te mostrarei”.
Levantou-se, pois, Abraão de madrugada…e foi…!
Se a Moral tem alguma importância diante de Deus, então, Abraão está perdido, conforme Kierkegaard em Temor e Tremor. E, de acordo com o que penso, Deus também está perdido, pois, contra o Geral-Moral—afinal, todo pai deve amar seu filho e protege-lo até contra os caprichos dos deuses—, ordenou seu “amigo” que matasse seu próprio filho, colocando-o e colocando-Se sob os juízos do Geral.
Assim, pela Moral, aquilo que Deus pediu e Abraão obedeceu —ob-cedeu, pois, ob-desceu— faz de Deus à-penas de todas as penas, só-mente mais-uma-má a-divindade, e de Abraão, caridosa-mente, apenas o mais devocio-ira-cional de todos os santarados!
Dessa forma, para ambos —Deus e Abraão— apenas não há-penas!
Sob que penas ambos encontrariam, apenas, pena?
As penas das Asas do Altíssimo agora só-mente traziam a Abraão tão-somente as escuridades da angustia que não tem pena de si mesma, pois, apenas crê que as penas não a penalizariam à des-peito do momento da dor!
Assim, Deus creu em Abraão e fez-se Deus para Abraão. E Abraão creu em Deus, e isto lhe foi imputado para a salvação! e, assim, essa fé criou Abraão para Deus!
Adão foi feito do barro. Abraão, toda-via, foi feito de fé, fogo, loucura, dor, medo, temor, tremor e paz-ciência!
Se Abrão, o Pai Grande, fosse um homem do que é Geral e normativo, ele nunca teria se tornado Abraão, Pai de Muitos!
Todavia, ele é o pai da fé justamente porque aceitou o ab-surdo-convite-in-posição de andar, circunstancialmente, acima do Geral e do normativo.
A Moral, que é o Geral, tem sua significação fora de si mesma; ou seja: ela se afirma como ente que diz respeito a todos, portanto, ao Geral. O que é Geral só se valida como afirmação de todos, do contrário, não confia em si mesmo para ser e existir, pois, seu significado não-é-em-sí, mas vem de fora!
O que é Geral não conhece intimidade, pois, o que é de todos nunca é intimo!
Já a fé não é de todos!— pois, contra o Geral, ela pode nos remeter, na Graça, solitariamente, para a obediência a Deus como o ab-surdo-ab-soluto; e isto sempre acontece contra o normal, pois, o Monte Moriá não acontece todos os dias de nossas vidas, e nem nós oramos: “O Moriá nosso de cada dia nos dá hoje”.
O sacrifício de Isaque, que se realizou aos olhos de Deus, é um golpe definitivo da fé nas forças da Moral para a salvação. E assim, destroi o mundo de todos e abre para todos um mundo, onde haja chão para cada indivíduo, quando o Monte Moriá nos for indicado!
O sacrifício de Isaque, conforme Gênesis 22, nos põe frente a frente com a total suspensão da Moral ante a obediência à fé. A Moral não levaria Abraão ao Monte Moriá! só se fosse para aniquilar a si mesma!
Quando Deus fala, a fé começa, e a Moral pára! E a fé a deixa em suspenso, pois, a Moral não tem como explicar o “crime do pai”, Abraão; e não tem como acalmar a “angustia do filho”, Isaque. E nem teria como impedir a História de ver Abraão como um des-naturado, uma besta maligna, não fosse a fé!
Pela Moral-Imediata Abraão está condenado. Ele foi salvo pela fé até mesmo diante e aos olhos de Isaque. Não sem traumas, pois, Deus passa a ser o Temor de Isaque.
Afinal, seu ato de devoção era completamente imoral, apesar de ser a mais elevada de todas as devoções entre os santos!
Ele creu em Deus e isto lhe foi imputado como justiça!
E mais que isto: o caminho-ato que levou Abraão ao Monte Moriá a fim de oferecer seu filho em sacrifício, conforme a horrenda ordem da Voz, em si mesmo, subverte a Moral e isto até nas arenas do mais aberto paganismo.
Hoje já se conhece bastante sobre a infindável quantidade de oferendas de seres humanos que foram feitas aos deuses. E por que foram feitas?
Os humanos não resistem à tentação da auto-justificação.
E sacrifícios sempre estabelecem a base fundamental da culpa do pecado em nós, que, enganosamente, nos remete sempre no caminho do auto-merecimento. Daí a presunção de que o sacrifício do homem pelo homem, feito aos deuses, pudesse abrandar os humores do reino invisível, pela via do mérito, do pagamento realizado pelo homem.
No caminho para o Monte Moriá, toda-via, não-há-via!
Por isto, não há fala, nem dis-curso, nem explicação e nem auto-justificação!
Nem mesmo se dito fosse a Abraão: “Aquele que sabe que deve fazer o bem, e não faz, nisto está pecando”—se poderia ajudá-lo naquela hora.
Afinal, naquele caso, o bem era o mal e o mal era o bem. Não levar Isaque ao altar de Moriá era desobediência à Voz de Deus, o que é mal para o homem. Levá-lo, entretanto, era a transgressão do que é intrinsecamente instintivo para os animais e também daquilo que há de mais sagrado para os humanos: a vida, especialmente a do filho! — era, portanto, um Crime Hediondo!
Toda-via, não-havia…
Havia sim, todavia, a não-via.
Assim, Abraão nada-via, pois, Nada-Havia como via!
Entre-tanto, tudo-via, onde, todavia, nada-havia!
Mas ele se via na via como um en-via-do do in-viá-vel!
Assim, tudo ha-via como via, mesmo que fosse, toda-via, a não-via!
Isto é Fé! Pois, mesmo no nada-via, ele via a via da Graça: “O Senhor proverá para si, meu filho, o cordeiro para o holocausto”.
Portanto, na Fé, o absurdo é des-absurdificado! Sem fé tudo é absurdo!
Sem fé, todavia, nada-há-como-via!
Nem há a via de Deus!
Daí, sem fé, não ser possível agradar a Deus!
Afinal, Deus é a não-via de quem presume ver!
É nessa esquina que Abraão se encontra enquanto tem três dias para andar. E um homem existindo nesse lugar-existencial, só tem duas opções: ou vira assassino e criminoso ou se torna o pai da fé.
E por que é Abraão o pai da fé e não o Juiz Jefté? O quê diferencia o sacrifício da filha de Jefté, do sacrifício espiritualmente consumado que Abraão fez, oferecendo Isaque, seu filho pela fé? E o que o diferencia dos demais pais que em-crença entregaram seus filhos aos deuses?
Jefté tentou fazer uma barganha com Javé: “Dá-nos a vitória e a Ti darei a primeira pessoa que sair-me a saudar dentre os da minha casa”—des-graça-da-mente veio-lhe ao encontro a sua filha!
Os demais pais que ofereciam seus filhos aos deuses o faziam na tentativa de aplacar os caprichos das divindades ou para garantir que as maldições não lhes cairiam sobre a cabeça.
Abraão, no entanto, jamais ofereceria Isaque à menos que fosse esmagado pela Voz. Abraão não era louco, era apenas capaz de loucura!
O que se seguiu a isto foi o caminho silenciosamente angustiado de um homem andando em fé, e em obediência à loucura de Deus. A loucura de Abraão vinha da mente de Deus!
Ora, aqui se percebe a diferenciação mais que tênue entre os atos humanos e seus significados, pois, à vista dos olhos e pela observação moral, ética, filosófica e psicológica do ato, não-é-possível-não-incluir Abraão entre os bárbaros da Terra.
Assim, não é também possível não atentar para o fato-subjetivo que diferencia Abraão dos demais bárbaros.
A fé carrega uma ética que lhe é intrínseca!
Jefté agiu conforme a crença-imitação da fé de Abraão, mas não havia nele a ética da fé, pois, foi ele quem indireta-mente ofereceu a sua filha, quando autorizou uma vida-oferenda a Deus, podendo ser qualquer um de sua casa!—ou seja: uma iniciativa louca; ao contrário de Abraão, que foi silenciosamente caminhando contra todas os seus desejos e vontades a fim de realizar a loucura de Deus.
Se a loucura de Deus é mais sabia que a sabedoria dos homens, então, como não pensar que os critérios da própria sabedoria não caem desvalidamente ante ao convite de Deus para que se pratique o ato-contra-todos-os-atos?
Só há ética se há Deus. E se há Deus tudo o que Ele pede passa a ser ético, pois, sem Ele não há ética. Portanto, se Deus é amor, Deus é também ética. Assim, toda obediência da fé àquilo que Deus pede, é ético, mesmo que os sentidos humanos não possam assim entender o ato!
Desse modo, Abraão cala a boca de todos, visto que, pelo ato-objetivo ele não era diferente dos demais. Ele torna-se o pai da fé pelo simples fato de ter obedecido em fé aquilo contra o que todo o seu ser se rebelava. Sua fé vence sua rebelião, mas é por existir uma rebelião-angustia na obediência da fé, que Abraão é um ser ético e diferente dos demais.
Ele crê contra o desejo!
E esta é a razão de eu dizer que a fé carrega em si a ética que relativiza todas as éticas objetivas; do contrario, Abraão não pode ser visto diferentemente de Manasses, que imolava seus filhos nos altares de Baal e Moloque.
O louco pratica sem fé a loucura. O homem da fé é capaz da loucura, mas somente como expressão de fé-ética, pois, só será fé se for uma resposta à Palavra de Deus, mesmo que esta chegue aos sentidos como loucura.
A implicação disso é que a verdadeira ética nem sempre se manifesta como ato-objetivo, mas nunca será ética se não nascer como ato-subjetivo da fé. Assim, Abraão é também o pai da fética!
No fim de tudo, sempre se ouve: “Se eu não tiver amor nada disso me aproveitará”. Fé, esperança e amor são apenas separáveis nos livros de teologia, mas nunca diante de Deus! porém, o maior destes, é o amor!
Abraão, toda-via, sem caminho, em sua loucura, caminha. Havia apenas silencio absoluto. Somente os sons das pesadas-pisadas de dor e perplexidade se faziam ouvir. Era um ser caminhando entre a certeza do Absurdo de seu ato e a fé no Absoluto do significado de crer no que não podia nem explicar, nem entender e nem justificar. E isto lhe foi imputado como justiça!
É por isto que as duas falas do caminho implicam em duas confissões que definem para sempre qual é a jornada da fé:
“Ficai aqui; e eu e o menino, tendo adorado, voltaremos…” — disse Abraão aos seus servos, que pertenciam ao Geral. A fé, depois de um certo caminhar, tem que prosseguir em solidão, sem testemunhas e sem cúmplices. Aliás, quem entenderia o Absurdo como adoração?
“O Senhor proverá para si o cordeiro para o holocausto” — respondeu ele à apavoradamente reverente suspeita de Isaque.
Assim, ele não confessa nada que não seja fé, fosse qual fosse o resultado. Abraão cria que Deus era o provedor-justificador de tudo o que nascesse como resposta da fé à ordem-proposta que viera na noite escura e que o acordara de seu sono, a fim de faze-lo andar em fé sobre as angustias do chão do Absurdo.
Imolar seres humanos, por iniciativa própria, a fim de apaziguar a divindade é um arquétipo universal poderoso. É fruto natural da Teologia da Terra.
De um modo ou de outro —até mesmo no Cristianismo—, os humanos imolam outros sobre ou fora dos seus altares a fim de apaziguar a ira de “Deus” por meios próprios.
No Monte Moriá esse paradigma universal se inverte. Daí podermos afirmar que a fé que nos justifica em Cristo ser o oposto do paradigma universal.