ECLESIASTES

 

          ECLESIASTES


No livro meu livro O Enigma da Graça  — os elementos da Teologia Moral de Causa e Efeito expressos pelos “amigos de Jó”, no julgamento que faziam das calamidades do patriarca ferido pela mão de Deus, são tratados por mim de maneira muito mais ligada ao dilema-horizontal da questão. .

No entanto, faz-se necessário vermos como tal maneira de enxergar a Deus e ao próximo é uma falácia, a começar pela observação da própria História. [1][1]

Ou seja, o universo funciona como universo e é regido pelas Leis físicas de causa e efeito. O problema é que o mesmo princípio não se aplica como uma certeza na vivência humana na História.

No universo físico todas as vezes que jogamos para o alto um objeto mais pesado que a camada de ar, ele volta e cai na Terra. Isto é absoluto. O mesmo, todavia, não se pode dizer da vida dos homens e nem de nenhuma forma de constância nas produções da História, tanto individual quanto coletiva . E essa é a razão pela qual muita gente tem dificuldade de viver crendo em Deus, pois, na prática, a experiência humana, nem sempre acontece premiando os bons, com bondade; e os perversos, com o juízo! Na Terra, é claro!

Manter a fé quando se chega a esta verdade-fato-da-vida significa dar o grande salto, fazer a grande entrega, que é quando o momento-moriá da alma humana acontece e é também quando serve-se a Deus por Deus, ou por nada!

É a impossibilidade de conciliar a idéia da existência de um ser que seja ao mesmo tempo Todo-Poderoso e Todo-Bom, o que aniquila a fé daqueles que pensam mais filosoficamente sobre a vida. Pois, de fato, pode-se crer que há Leis exatas regendo o universo físico (o que nos inspira a crer em Deus), mas a desordem e as injustiças praticadas contra, sobre ou em favor dos humanos, parecem não combinar com a existência de um Deus que seja soberano sobre as coisas visíveis e invisíveis, e que exerça Seu Todo-Poder com Toda-Bondade aqui neste planeta e durante o prazo da existência terrena de todos os humanos!

 

A grande questão, todavia, é a seguinte: até que ponto podemos incluir o ser humano nas fronteiras desse universo de Leis exatas?

 

Ora, nós, os humanos, somos filhos de dois mundos: vivemos no tempo e no espaço; no universo das Leis fixas, e, ao mesmo tempo, somos filhos da liberdade — liberdade de ser; de tentar deixar de ser; de ser contra ou a favor de nós ou de outros; de ser sem admitir que se é; de não ser para poder justificar o ser sem sentido; e, sobretudo, ser contra Deus; ou ser contra a idéia de um Deus que cria um mundo fixo (o universo e suas Leis fixas) e, um outro, feito de animais e humanos, onde a liberdade, a individualidade e a luta pela existência são regras do existir.

Para tais pessoas, o único mundo possível em harmonia  é justamente aquele no qual elas dizem não acreditar que tenha existido: o Jardim do Éden — onde natureza e homens existiam em plena harmonia—, antes do tempo em aquele que era um mundo só, fosse partido em muitos pedaços, especialmente nos ambientes de nossos complexos corações.

Ora, para que o absurdo mundo atual faça algum sentido, tem que ter havido aquilo que a Bíblia chama de a Queda! Do contrário, não é possível conciliar a ordem universal com o caos da História humana, e, muito menos ainda, com um Deus que seja Todo-Poder e Toda-Bondade!

A tese de Jó era esta. Ele não entendia o que lhe estava acontecendo, mas negava-se a aceitar o pressuposto de causa e efeito a partir do qual seus amigos o julgavam. [2][2]

Nesse capítulo, é acerca dessa questão que desejo tratar antes de olharmos a falácia dessa forma de pensar também na perspectiva “teológica”, incluindo a da maioria dos cristãos, que pensam como os “amigos de Jó.”

Portanto, antes de falarmos sobre a “teologia” desse pensamento, quero que você saiba que essa tese não resiste a um confronto nem mesmo com as verdades da História, conforme ela se deixa “ver”.

E, neste sentido, a melhor resposta histórica que os aderentes da Teologia Moral de Causa e Efeito poderiam receber vem de um dos livros menos lidos, cridos e meditados da Bíblia: o livro de Eclesiastes de Salomão. [3][3]

A razão porque ele é tão pouco lido nada tem a ver com sua profundidade ou complexidade, pois, como em toda genuína sabedoria, o que é verdadeiro se faz entender com simplicidade. Portanto, não são as dificuldades de compreensão que impedem a Leitura, a aceitação e a vivência proposta por Deus em Sua Palavra no livro atribuído a Salomão.

O que dificulta é justamente o poder esmagador de sua simplicidade baseada na observação da História, tal qual ela se mostra aos olhos, sentidos e percepções humanos. E entre essas observações, aparece de modo esmagador o desmantelamento de todas as fabricações de causa e efeito criadas pelos amigos de Jó.

No Eclesiastes, a vida é como ela é: sem tentativa de abençoar a inegabilidade da Queda dos Humanos no Planeta Terra.

A outra razão da não apreciação do Eclesiastes é que ele não fala abertamente da eternidade — no máximo diz que o espírito volta a Deus, que o deu —, não fala nem do céu e nem do inferno; e seca a vida aqui, na arena das competições, dos julgamentos, dos esforços inúteis, das jactâncias idiotas, dos sucessos imerecidos, dos insucessos injustos, dos poderosos insensatos, dos sábios desprezados, dos ricos sem apetite, dos ricos estéreis, dos justos esquecidos, dos esnobes afamados, dos governadores cercados de puxa-sacos incompetentes, dos bens materiais que não promovem nem paz nem sono, das vitórias logo esquecidas, das alegrias alienantes, das tristezas que melhoram a alma, dos afazeres que nada mais são que vaidade e correr atrás do vento.

Por essa razão o livro de Eclesiastes é insuportável, ele é histórico demais e realista demais. Nele não há milagres. Seu grande milagre é o discernimento de como a vida é, sem os auto-enganos aos quais nos entregamos a fim de diminuir a nossa dor acerca dos esmagadores fatos da existência humana na Terra.

O que passo a fazer agora é uma Leitura do Eclesiastes junto com você. E por quê? Porque creio que o Eclesiastes não está na Bíblia por acaso. O que penso é que a sua compreensão é um dos mais poderosos antídotos contra a Teologia Moral de Causa e Efeito dos amigos de Jó. [4][4]

E mais que isto: penso que o texto de Eclesiastes é uma versão filosófica em favor de Jó e de suas percepções, sendo que o observador não é um “sofredor”, é, provavelmente, um rei existencialista e que, pela sabedoria, decidiu, ele mesmo, abrir todos os “pacotes de existências” que lhe estavam disponíveis. [5][5]

Ora, mesmo sabendo que a maioria das pessoas não gosta de ler os textos da Bíblia quando estão transcritos num livro, sempre erroneamente assumindo que o leram em algum dia, e, portanto, julgam que “pulando a Leitura” estão ganhando tempo, eu peço que você não faça isto. Leia o texto e compare com as notas de rodapé. E a razão é simples: em Eclesiastes, aprendemos que a Teologia Moral de Causa e Efeito é filha da insensatez daqueles que não percebem que os princípios de causalidade física do Universo não são aplicáveis aos relacionamentos humanos.

Se assim fosse, o Cosmo seria um Caos. O Cosmo, todavia, tem Ordem — pelo menos, ordem suficiente a fim de poder ser parcialmente pre-visto. A História humana é que é sua antítese. Os humanos são o caos do Cosmo e suas produções, na maioria das vezes, aguardam um julgamento longínquo e que, quase sempre, acontece depois da morte dos perversos. [6][6]

Uma das marcas mais fortes do ser iníquo e perverso é sua adaptabilidade e sua capacidade de driblar as calamidades. No Livro de Eclesiastes, essa tese é irrebatível. Salomão, em sua sabedoria, como que nos diz: Jó está certo. Debaixo do sol tudo é vaidade e não há sentido nas coisas. Nossa salvação está em temer a Deus e viver o melhor que nos venha, e, se possível, suportar o que não gostamos sem pensarmos que trata-se de um juízo especial, afinal, neste mundo caído quem vive para se perceber, mesmo como vaidade, já está no lucro. Isto porque, debaixo do sol, as injustiças têm seu lugar de primazia e ainda assim justiça acontece conforme a Sabedoria de Deus, mas não é uma Lei que tenha auto-aplicabilidade automática. [7][7]

Senão, veja:

 

“Vi ainda todas as opressões que se fazem debaixo do sol: vi as lágrimas dos que foram oprimidos, sem que ninguém os consolasse; vi a violência na mão dos opressores, sem que ninguém consolasse os oprimidos. ·

Pelo que tenho por mais felizes os que já morreram, mais do que os que ainda vivem; porém mais que uns e outros tenho por feliz aquele que ainda não nasceu e não viu as más obras que se fazem debaixo do sol.[8][8]

 

Então, vi que todo trabalho e toda destreza em obras provêm da inveja do homem contra o seu próximo. Também isto é vaidade e correr atrás do vento.[9][9]

Então, considerei outra vaidade debaixo do sol, isto é, um homem sem ninguém, não tem filho nem irmã; contudo, não cessa de trabalhar, e seus olhos não se fartam de riquezas; e não diz: Para quem trabalho eu, se nego à minha alma os bens da vida? Também isto é vaidade e enfadonho trabalho”.[10][10]

 

Então ele passa a falar daqueles que pensam que são, sem reconhecerem que maior do que eles é o trono onde se assentam e a posição circunstancial que ocupam:

“Vi todos os viventes que andam debaixo do sol com o jovem sucessor, que ficará em lugar do rei. Era sem conta todo o povo que ele dominava; tampouco os que virão depois se hão de regozijar nele. Na verdade, que também isto é vaidade e correr atrás do vento.[11][11]

 

Neste ponto a sabedoria se dirige contra aqueles que pensam que, pelo seu muito falar, serão ouvidos diante de Deus e que pensam que a sua religiosidade tem algum valor nas regiões celestes:

 

“Guarda o pé, quando entrares na Casa de Deus; chegar-se para ouvir é melhor do que oferecer sacrifícios de tolos, pois não sabem que fazem mal.·

Não te precipites com a tua boca, nem o teu coração se apresse a pronunciar palavra alguma diante de Deus; porque Deus está nos céus, e tu, na terra; portanto, sejam poucas as tuas palavras.[12][12]

Porque dos muitos trabalhos vêm os sonhos, e do muito falar, palavras néscias. Quando a Deus fizeres algum voto, não tardes em cumpri-lo; porque não se agrada de tolos. Cumpre o voto que fazes. Melhor é que não votes do que votes e não cumpras. Não consintas que a tua boca te faça culpado, nem digas diante do mensageiro de Deus que foi inadvertência; por que razão se iraria Deus por causa da tua palavra, a ponto de destruir as obras das tuas mãos? Porque, como na multidão dos sonhos há vaidade, assim também, nas muitas palavras; tu, porém, teme a Deus”. [13][13]

 

Outra vez Salomão introduz o tema das injustiças praticadas sem causa na Terra:

 

“Se vires em alguma província opressão de pobres e o roubo em lugar do direito e da justiça, não te maravilhes de semelhante caso; porque o que está alto tem acima de si outro mais alto que o explora, e sobre estes há ainda outros mais elevados que também exploram”.[14][14]

 

Agora ele arremete contra a impossibilidade de que haja saciedade no coração humano sem que isto seja fruto da Graça e dom de Deus:

 

Quem ama o dinheiro jamais dele se farta; e quem ama a abundância nunca se farta da renda; também isto é vaidade. Onde os bens se multiplicam, também se multiplicam os que deles comem; que mais proveito, pois, têm os seus donos do que os verem com seus olhos? Doce é o sono do trabalhador, quer coma pouco, quer muito; mas a fartura do rico não o deixa dormir. [15][15]

Grave mal vi debaixo do sol: as riquezas que seus donos guardam para o próprio dano. E, se tais riquezas se perdem por qualquer má aventura, ao filho que gerou nada lhe fica na mão. Como saiu do ventre de sua mãe, assim nu voltará, indo-se como veio; e do seu trabalho nada poderá levar consigo. Também isto é grave mal: precisamente como veio, assim ele vai; e que proveito lhe vem de haver trabalhado para o vento? Nas trevas, comeu em todos os seus dias, com muito enfado, com enfermidades e indignação.[16][16]

Eis o que eu vi: boa e bela coisa é comer e beber e gozar cada um do bem de todo o seu trabalho, com que se afadigou debaixo do sol, durante os poucos dias da vida que Deus lhe deu; porque esta é a sua porção.[17][17]

Quanto ao homem a quem Deus conferiu riquezas e bens e lhe deu poder para deles comer, e receber a sua porção, e gozar do seu trabalho, isto é dom de Deus. Porque não se lembrará muito dos dias da sua vida, porquanto Deus lhe enche o coração de alegria.[18][18]

Há um mal que vi debaixo do sol e que pesa sobre os homens: o homem a quem Deus conferiu riquezas, bens e honra, e nada lhe falta de tudo quanto a sua alma deseja, mas Deus não lhe concede que disso coma; antes, o estranho o come; também isto é vaidade e grave aflição.[19][19]

Se alguém gerar cem filhos e viver muitos anos, até avançada idade, e se a sua alma não se fartar do bem, e além disso não tiver sepultura, digo que um aborto é mais feliz do que ele; pois debalde vem o aborto e em trevas se vai, e de trevas se cobre o seu nome; não viu o sol, nada conhece. Todavia, tem mais descanso do que o outro, ainda que aquele vivesse duas vezes mil anos, mas não gozasse o bem. Porventura, não vão todos para o mesmo lugar?[20][20]

 

Então surge o tema da animalidade humana e das causalidades injustas; ou seja, Salomão fala do Darwinismo presente na bestialidade humana, expresso, sobretudo, pelas desigualdades e pela banalidade com a que a existência  é vivida:

 

Todo trabalho do homem é para a sua boca; e, contudo, nunca se satisfaz o seu apetite![21][21]

Pois que vantagem tem o sábio sobre o tolo? Ou o pobre que sabe andar perante os vivos? Melhor é a vista dos olhos do que o andar ocioso da cobiça; também isto é vaidade e correr atrás do vento.[22][22]

A tudo quanto há de vir já se lhe deu o nome, e sabe-se o que é o homem, e que não pode contender com quem é mais forte do que ele”.[23][23]

 

Salomão agora, depois de experimentar de tudo um pouco, chega à conclusão que ninguém pode determinar o que é bom ou mal para um homem. Isto cada um terá que aprender com Deus e com a vida, pois, Deus não deu a ninguém tal receita de felicidade:

 

“É certo que há muitas coisas que só aumentam a vaidade, mas que aproveita isto ao homem? Pois quem sabe o que é bom para o homem durante os poucos dias da sua vida de vaidade, os quais gasta como sombra? Quem pode declarar ao homem o que será depois dele debaixo do sol? [24][24]

 

Subitamente a reflexão se dirige à casa de Jó. Ele é, sem dúvida, um dos melhores exemplos do que abaixo se descreve:

 

Melhor é a boa fama do que o ungüento precioso, e o dia da morte, melhor do que o dia do nascimento. Melhor é ir a casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete, pois naquela se vê o fim de todos os homens; e os vivos que o tomem em consideração. Melhor é a mágoa do que o riso, porque com a tristeza do rosto se faz melhor o coração. O coração dos sábios está na casa do luto, mas o dos insensatos, na casa da alegria. Melhor é ouvir a repreensão do sábio do que ouvir a canção do insensato. Pois, qual o crepitar dos espinhos debaixo de uma panela, tal é a risada do insensato; também isto é vaidade.[25][25]

Verdadeiramente, a opressão faz endoidecer até o sábio, e o suborno corrompe o coração.[26][26]

Atenta para as obras de Deus, pois quem poderá endireitar o que ele torceu? Post navigation