—–Original Message—–
From: A HORRÍVEL LUTA COM MINHA ALMA
Sent: terça-feira, 2 de março de 2004 13:14
Subject: Não consigo agradecer pela perda de meu filho
Querido Pastor,
Esta é minha história.
Estou casada há quase sete anos. Meu marido e eu amamos crianças, mas como nos casamos bem jovens (vinte anos), e como, assim que casamos viemos para outro país, decidimos esperar para ter filhos quando voltássemos para o Brasil.
Mas logo que chegamos aqui começamos a freqüentar uma igreja, e nos envolvemos nas atividades dela; com isso, nossa volta para o Brasil foi ficando cada vez mais difícil, mesmo porque nossa visão mudou muito, e começamos ver que Deus tinha um propósito para nós aqui.
Diante de tudo isto, resolvemos que com um tempo teríamos filhos aqui mesmo, mas fiquei doente e isso me desanimou bastante. Comecei a questionar o porquê de tudo. Então tive que ir ao Brasil para me tratar, pois aqui o tratamento ficaria muito caro.
Chegando ao Brasil, fiz uma série de exames, e para minha tristeza, os médicos disseram que o problema que eu tinha poderia trazer complicações em uma futura gravidez, pois as deficiências orgânicas que eu tenho poderiam prejudicar a gravidez, embora isto não me impedisse de tentar, pois daria para ter uma gravidez acompanhada por especialistas.
Neste período em que estive no Brasil, meu marido foi consagrado a pastor lá no outro país.
Aí é que minhas angústias aumentaram, pois nunca me julguei “espiritual”; ainda mais, para ser esposa de pastor.
Sempre tive dificuldades com oração, leitura da Palavra, jejum, evangelização, todas essas coisas que um crente politicamente correto deve fazer; e isso sempre me incomodou. Sempre que oro, peço a Deus para que Ele me ajude, para que eu consiga ser uma filha Dele mais diligente.
Retornando ao outro país, retomei minhas atividades na igreja. Meu marido e eu resolvemos esperar mais um pouco para ter filhos.
O tempo foi passando, e começamos a pensar na idéia outra vez, já que eu estava bem, fisicamente. Era um risco que eu teria que correr, mas me dispus a pagar o preço, visto que queria muito um filho.
Começamos a sonhar, planejar e finalmente engravidei. Estávamos até escolhendo nomes de menino. Tínhamos certeza que seria um menino. E era mesmo… ficamos muito felizes, pois estava tudo bem; e era o que nós queríamos.
Minha saúde na gestação até melhorou. Eu sempre agradecia a Deus por estar me guardando, e dando um bom desenvolvimento ao bebê.
Até que peguei um resfriado bobo que estava persistindo… mas nada sério. Porém, como estava grávida, achei melhor procurar o médico.
Chegando lá, foram fazer a ultrassonografia, e para surpresa e horror de todos, o bebê estava morto. Eu estava no 5º mês de gravidez. Estava tudo indo bem… eu não senti nada de estranho; mas ele já vinha torcendo o cordão umbilical há um tempo, e acabou morrendo por falta de nutrientes; pois o sangue não tinha mais passagem.
Pirei. Me senti culpada e tudo mais. Os médicos garantiram que foi um acidente e que, infelizmente, isso às vezes acontece.
Agora estou muito amargurada, pois tento não murmurar contra Deus, mas dói muito.
As pessoas tentam me consolar com frases do tipo “quando sou fraco, então é que sou forte”; e também “em tudo dai graças”. Eu sei que tudo isso é certo, pois é bíblico; mas perdi a motivação.
Penso que talvez essa criança fosse meu Isaque. Mas só de pensar que Deus permite que certas coisas nos aconteçam para formar em nós o caráter de Cristo, fico muito triste… pois Deus também sabe das minhas limitações.
Parece que não vou conseguir me levantar; não tenho mais vontade de fazer nada na igreja; tenho sido rude com meu marido; e me sinto culpada, pois sei que é conseqüência de minhas atitudes… Não tenho orado, e não tenho louvado a Deus pelo que aconteceu. Quero muito ter um filho, mas penso que se continuar desse jeito, Deus não irá permitir; ou então tenho medo do que pode acontecer outra vez.
Tenho sido tão má que até me questionei acerca de minha vida cristã, se realmente tive uma conversão genuína; pois tantos homens de Deus diante de situações até piores louvavam a Deus em todo tempo, e eu não.
Quero sair dessa, tenho muito medo de tudo que está acontecendo dentro de mim, e gostaria muito que o senhor respondesse.
Nessa situação, creio que alguém de fora do contexto pode ter uma visão diferente para nos trazer alguma ajuda.
Obrigada por abrir esse espaço para pessoas que precisam de alguém para ouvi-las.
Resposta:
Minha amada irmã:
Que seu coração fique grávido de esperança!
Uma mulher casada desejar engravidar e sofrer com as eventuais dificuldades no processo é algo tão perturbador para as mulheres quanto antigo é o dilema, inclusive na Bíblia.
Há grandes aflições bíblicas baseadas em tais circunstâncias da vida. Foi assim com Sara, Rebeca, Ana (mãe de Samuel) e outras.
É tão forte a situação para a alma da mulher, que as promessas de consolo que Deus fez a Israel, muitas vezes, se serviram do drama da “mulher estéril” ou da mulher que “não dá à luz”, a fim de expressar o socorro esperançoso de Deus, fazendo com que maior fosse a alegria da que não pode dar à luz do que a alegria da que teve muitos filhos.
O que me afligiu foi a “conexão” que você fez entre “não gostar das coisas que uma verdadeira esposa de pastor deve gostar” — orar muito, jejuar, evangelizar, etc. — com o fato de seu neném ter morrrido. Isso, sim, é mais preocupante do que qualquer coisa.
Digo isso, porque já vi muita gente adoecer na alma por fazer tal “leitura” das dificuldades da vida. Para você, agora, parece que Deus não deu o filho porque você não é “a filha dedicada”, que deveria amar aquilo que você mesma determinou que seja o bom comportamento e prática espiritual de uma boa esposa de pastor.
A primeira coisa que você precisa saber, é que Deus não olha para pastores e suas esposas de modo diferenciado do que Ele olha qualquer outro casal humano. Deus não tem os pastores como Vips do Reino de Deus. A própria “importância do ministério” sobre as demais atividades humanas é pura invencionice cristã.
A “igreja” faz essas diferenciações, mas Deus não.
A segunda coisa que desejo lhe dizer é que, se as esposas de pastor têm que se dedicar à oração, ao jejum e à evangelização a fim de se “qualificarem” para o ministério, então, minha amada, quase todos os pastores deveriam deixar o ministério, pois a maioria esmagadora também quase não ora — a não ser em comunidade, durante o culto —, e suas esposas também não.
Pensar no ministério com essa visão equivocada, e chamá-la para ser a base culposa da perda do seu neném, poderá ter conseqüências desastrosas para a sua alma e para o seu casamento.
Para a sua alma, porque você se encherá de uma culpa irreal e acabará por ficar com raiva de Deus, que a chamou para uma tarefa que você não buscou; e que ainda pune você por não ter as supostas qualificações que uma “genuína mulher de pastor” precisa possuir.
Já seu casamento poderá sofrer muito, e logo, pois seu marido pode ficar cansado dessa sua paixão pela possibilidade da gravidez, e não por ele mesmo.
Até mesmo para que você possa voltar a engravidar, é fundamental que você esqueça essa “vontade louca” de ficar grávida. Quanto mais ansiedade pela gravidez, mais difícil ela se tornará.
Dói esperar um filho e vê-lo nascer morto… especialmente quando é o primeiro. É normal sentir essa dor. O problema é que sua dor está amplificada pela ansiedade anterior (de ficar grávida), pela sua sabida deficiência física para engravidar e pela culpa (no caso, a de não ser a mulher “qualificada” para ser uma mulher de pastor).
Então, a ansiedade retida, a impotência orgânica identificada, e a “culpa criada” colocaram você nesse lugar abismal de depressão, culpa e raiva de Deus; de um Deus que a teria chamado para algo, para o que Ele não havia “qualificado” você, de acordo com os padrões que lhe foram ensinados.
Além disso, o que há na base de sua culpa, também, é uma certa idéia de barganha, tão comum entre todos os crentes. É o que eu chamo, no meu livro “O Enigma da Graça” — um comentário existencial sobre o livro de Jó —, de “Teologia Moral de Causa e Efeito”.
Ou seja: os crentes ainda pensam, de modo pagão, que a razão de coisas boas nos acontecerem é o nosso bom comportamento; e que as ruins são sempre a mão de Deus “pesando” contra nossos maus comportamentos ou sentimentos.
De fato, minha querida, não é nada disso. Você perdeu a criança como qualquer outra mãe. E caso você já tivesse outros dois filhos, tal perda teria as suas próprias dores, mas você jamais faria a “leitura” que você está fazendo do ocorrido.
Portanto, saiba o seguinte:
1. Você não precisa ficar tentando dar “glória a Deus” por ter perdido o seu filho. Até Jesus, na hora anterior ao que faria a Lázaro, ressuscitando-o, não deixou de chorar de tristeza. Essa teologia do “louvor que liberta” só é boa quando é natural; quando a própria pessoa reage à dor com gratidão ao mistério de Deus. Mas quando é uma receitinha de cura para a tristeza, é pior do que a murmuração sincera, pois cria uma raiva adorativa e uma adoração raivosa.
2. Sinta a dor da perda. Mas trate a perda como um fato, não como um oráculo, uma lição, um tratamento de Deus ao seu caráter e à sua alma carente de disciplina. Pelo amor de Deus, saia desse esquema mental, pois ele trará conseqüências desastrosas, em médio e longo prazo.
3. Trate de sua saúde sem aflição neurótica. A gente sofre de muitas coisas no corpo. E não há uma explicação espiritual para tais deficiências, exceto a certeza de que este é um mundo caído, e que coisas boas acontecem a gente má, assim como coisas más acontecem a gente boa. Nesta hora, um choque de realidade pode ajudá-la; e não há conteúdo melhor para lhe dar esse choque do que a leitura do livro de Eclesiastes. Lá você aprenderá que a vida é assim mesmo.
4. Para uma mulher que deseja ter um filho, basta-lhe a própria vontade de ter, pois a associação de tal esperança a uma aceitação especial de Deus em relação à nossa vida pode gerar as piores doenças de alma que você possa imaginar.
5. Desse modo, saiba que vocês apenas perderam um filho. Digo “apenas” porque é “apenas, mesmo”. Uma senhora do interior do Amazonas, temente a Deus, que rema horas para ir a um culto, e que não faz outra coisa senão farinha de mandioca e comidinha para os filhos, em média, para cada duas gravidezes que tem, uma é perdida; muitas vezes por acidentes e doenças da beira do rio. Nenhuma dessas mulheres acha que havia um complô divino contra elas. Ou seja, trata-se de um fato da vida, e tem tudo a ver com as circunstâncias, tanto as sociais e econômicas como as de natureza física e os acidentes.
6. O problema todo vem das falsas promessas que são feitas em nome de Deus. Promete-se muito para as pessoas, o que Deus não prometeu. Ou, então, se faz das exceções bíblicas, regras para o cotidiano. E isso gera as piores frustrações.
7. Filhos, minha querida, tem gente que tem e tem gente que não tem. Também tem gente que não poderia ter, mas consegue ter. É assim. É assim com milhares, milhões…
Só que, enquanto é estatística, não dói na gente; mas quando deixa de ser estatística e acontece com a gente — no caso de sermos crentes culpados neuroticamente e enganados pelas promessas das “barganhas com Deus” —, a situação toma proporções descabidas.
8. Sugiro que você leia este site, todo ele, e que veja como todos têm dramas e conflitos, e como todos carregam suas próprias dores e dificuldades.
9. Agora, dedique-se ao seu marido e a você mesma. Saia. Passeie. Viva. Prossiga. Seja você.
E não associe a sua plenificação à maternidade, pois se assim você fizer, mesmo que tenha um filho, não lhe será saudável, visto que você logo descobrirá que filhos não são o bem que enche e satisfaz a alma. Eles fazem parte de nossas vidas e nós da deles, mas nem nós os completamos, nem eles completam a nós. Ter um filho não será o certificado de felicidade que você está pensando que é.
10. Sobre questionar a sua conversão, pela sua reação ante o acontecido, também é tolice. Veja na Bíblia como todos os homens de Deus vivem momentos de total desistência, cansaço, incompreensão e até raiva, como foi o caso de Jonas. E a Bíblia trata esses momentos como normais. A prova disso são os salmos, que estão cheios de queixas e amarguras.
Mas Deus consente. Deus não é melindroso. Ele é mais maduro do que nós, não é? Ora, se até eu entendo, por que Ele não entenderia? Somos mais avançados na compreensão do que Ele? Ora, essa é outra criação maligna da religião: um Deus sensível, caprichoso, mau, que envia a dor, e ainda pede que o cara cante bonitinho para que não lhe suceda coisa pior.
Por enquanto, vou ficando por aqui, ainda que haja várias outras coisas a dizer a você. Mas fica pra outra hora.
Por enquanto, pense no que lhe falei. Sei que se você entrar neste site e começar a cascavilhá-lo encontrará muitos tesouros que farão bem à sua alma.
Receba meu carinho e minhas orações.
Nele, que nos promete alegria, mesmo sem filhos,
Caio
2 de março de 2004
Copacabana
RJ