NÃO ME PERMITO SER FELIZ!
Pastor amigo,
Depois de ouvi-lo na Catedral do Rio, já preguei a mensagem da Figueira amaldiçoada em algumas igrejas e grupos, e a cada dia a tenho pregado para mim mesmo. A ânsia é de resgatar minha identidade, achatada por atitudes performáticas da camuflagem religiosa de anos e anos.
Pastor, um dia eu escrevo menos constrangido. Quero dizer… Eu evito te escrever por conta da demanda impressionante de CARTAS, por isso dessa vez quero só comentar uma experiência que tive no Sábado último.
Minha esposa foi a minha Clínica para almoçarmos juntos, com nossos dois filhotes: um espoletinha de 4 anos e uma criaturinha de 1 mês e meio. Já na portaria, sem mais nem menos, o de 4 anos saiu correndo na frente enquanto paramos para que alguns conhecidos admirassem o caçulinha.
Como ele nunca se afastou assim em direção à rua, fiquei tenso quando o perdi de vista, e caminhei para a avenida.
Quando cheguei lá, onde estava meu filho? Simplesmente, não estava… Sumiu em fração de segundos. Eu não sabia nem para qual esquina correr para procurá-lo! Meu coração já se derretia como manteiga. Escolhi a direita e fui, quando de repente, o rapazinho vira a esquina de volta, passa por mim no “maior pau” e ainda comenta: “Olha, pai! Eu sou o The Flash!”.
Bom, me controlei para não “aleijar” o The Flash! E tudo não passou de uma dessas escapadelas corriqueiras das crianças.
O que, na verdade, eu quero comentar tem a ver com um e-mail que você respondeu dia desses. Você falava sobre nossa dificuldade em aceitar a Graça de ser feliz e da vida estar numa boa, sem aquela sensação de mal-estar culposo diante do bem-estar e dos tempos de bonança e amor.
Ora, eu pensava que já tinha me libertado de ficar mal quando tudo está bem, e só ficar bem quando tudo está mal, numa sofrer cíclico, expiatório e purificador.
Mas, naquele milésimo de segundo durante o qual estive parado a frente da Clínica cogitando que meu filho pudesse ter sido seqüestrado, levado, roubado de mim e pensando o que fazer, alguns pré-pensamentos primitivos, aleatórios e desestruturados subiam-me das profundezas do inconsciente com a sombra própria dos pesadelos do sono
Enquanto almoçava, lembrei-me desses sub-pensamentos e de organizar todo aquele sentimento em palavras.
Neles eu dizia:
“Eu sabia! Estava tudo bom demais para ser verdade! Um dia alguma coisa ia acontecer! E agora???”
Pastor, com sinceridade e sem auto-piedade, fico me perguntando se um dia vou me permitir ser feliz, descansado…menos preocupado, menos responsável, menos servo e mais filho.
Se um dia vou deixar os ombros relaxarem… e Confiar!
Percebo que nem me felicito com as conquistas pessoais: Após ter comprado carro, apartamento, clínica—tudo com muito suor—, não deixo minha alma festejar o bem. Mando-a se acalmar e não fazer folia, dizendo para ela aquilo que ouvi desde que nasci como filho mais velho: “Não fez mais que sua obrigação!”
Vivo, então, como se eu fosse um desencantado que conhece o Deus-Zeus-estraga-prazeres.
Fruto disso, hoje eu pensei: Ué! Será que minha alma é pagã?
Ora, é lógico que isso tudo nem sempre assumi categorias tão conscientes como as que descrevi.
São quase sempre reflexões posteriores acerca desses conteúdos inconscientes que afloram mais visivelmente para mim quando em situações como essa que envolveu meu filho fujão.
Caio, não prego outra coisa senão o Evangelho do Reino, seja na igreja, seja na secularidade. Assumi que a Graça é melhor que a vida e me alegro, mas no fundo ainda sigo para conquistar aquilo para o qual também fui conquistado. E no meu caso em particular, parece faltar a dimensão psicológica e vivencial da Graça que prego, ainda que em contradição.
No entanto, não pareço conviver bem com a contradição e me cobro a falta de PAZ.
Pastor-amigo-psicanalista, eu te pergunto:
-Meu caso tem jeito? (rsrs)
Na Mesma Graça,
Marcelo
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Resposta:
Meu amigo amado,
Já estive em situações como essa sua, só que muito mais graves. Criar filhos é ter que lidar também com o susto. Assim, a questão não é a angustia pelo sumiço do filho (que é uma angustia mais que normal), mas sim o processo mental de auto-boicote; tipo: “Eu sabia que era bom demais para ser verdade”—o que revela essa predisposição para se proteger da alegria.
Auto-boicote é algo neurótico. É uma espécie de auto-proteção aquilo que de fato realiza o auto-boicote.
Classicamente falando esse estado psíquico seria o resultado de experiências sexuais infantis e, algumas vezes, até indisponíveis para o consciente, mas que demandaram da pessoa, no nível inconsciente, uma ação coercitiva e de auto-proteção contra o que estava acontecendo. Tais reações teriam tido o papel de proteger o indivíduo quanto àquilo que teria acontecido antes do sujeito estar preparado. Tais experiências ou acontecimentos de uma idade muito tenra, seriam aqueles que desenvolveriam a “auto-proteção”; e, quando tal estado se desenvolveu à partir de um acontecimento prazeroso, porém “proibido”, o psiquismo cria a barrira ao prazer. Seria a chamada “neurose de proteção”.
A questão é que essa função psíquica, se não descoberta e elaborada, acaba por tornar o indivíduo um ser que associa alegria e prazer à proibição, fazendo com que a pessoa acabe por se proteger da própria alegria e prazer de viver e realizar. Ou seja: tudo o que é gostoso e bom deve ser objeto de uma certa rejeição ou até de indiferença.
Desse modo, sempre que algo fica bom, a pessoa se defende do prazer, reagindo a ele como algo proibido, ainda que inconscientemente.
Nós que estamos andando juntos aqui neste site—como é o seu caso, desde o início—, estamos fazendo grandes progressos. Observe: antes as questões eram acerca da culpa; agora, entretanto, são acerca da paz. Ou seja: já viramos uma página extremante importante, e estamos caminhando na direção almejada.
O que o ajudará imensamente, agora, é saber que seu auto-boicote é real, e que, na Graça de Deus, sem medo e sem culpa, você pode buscar conhecer as causas.
Ora, no seu caso, tais causas não precisam passar necessariamente pelo diagnóstico clássico da neurose de defesa associada à praticas sexuais precoces, visto que você mesmo introduziu duas questões igualmente importantes: a criação (“…você não fez mais do que a sua obrigação…”), e religião, com as culpas e proibições à toda sorte de prazer que ela ensina de modo constante. Ora, essas duas realidades, somadas, já são em-si mesmas fatores importantíssimos a serem discernidos quanto ao que produziram em você, em sua alma, no que tange a tornar você um indivíduo que se proíbe do que é prazeroso.
“Esquecer das coisas que para trás ficam”, segundo Paulo, é o único modo de poder caminhar das coisas que adiante de nós estão. “Esquecer”, aqui, é desemocionalizar a memória; é poder lembra sem a angustia do ocorrido e suas culpas; é poder discernir sem medo; é poder entender o processo sem culpa; é poder encarar os fatores na fonte, e não considerá-la poluída.
Na Graça de Deus esse “esquecer” equivale a lembrar positivamente; significa aprender com o passado para o hoje e o amanhã; significa deixar o que se discerniu como ruim, a fim de se prosseguir para o que é bom.
Ora, tudo isto só pode acontecer quando a alma já não teme se ver; e isto só acontece sob a certeza da Graça.
O próximo passo será você, sem angustia, buscar fazer aquele tipo de exercício que você fez depois que achou o The Flash.
No entanto, tudo o que está acontecendo hoje é parte de um processo de cura e libertação, e só pôde acontecer porque você deixou de mascarar o mal-estar com a culpa. Antes você se sentia muito pior, e atribuía tudo a neurose pecaminosa, e, assim, sofria porque sofria…
Agora, todavia, a culpa já não mascara o sentir, e você está indo cada vez mais fundo até às raízes dessa pulsão de auto-boicote. Faça a jornada sem medo. Ele sonda o seu interior, e, para Ele, as trevas e a luz são a mesma coisa.
Receba meu beijo amigo!
Nele, sempre,
Caio