UM MESTRE DISSE QUE A LEI NÃO ACABOU



Somerville, 02/02/05

Oi Caio.

Acabei de ler o texto seu intitulado ‘Paulo e a libertação da psicose básica’ e preciso te dizer uma coisa bem sincera: quanto mais eu leio sobre a Lei X Graça, mais eu fico confuso. Menos eu entendo, e quando eu acho que não há mais lei, ela aparece. Quando eu creio somente na Graça, a Lei dá um jeito de se manifestar. E olha que eu leio os seus textos com muita freqüência, todos os dias, não só os novos, mas os antigos, desde ‘cartas’ à ‘historias’; já li outros artigos sobre o mesmo assunto, e a duvida é sempre a mesma: até onde vai a Lei, onde começou a Graça? Se Deus é o mesmo ontem, hoje e eternamente, porque haveria Lei se sabemos que ‘Deus e amor’?

Bom, outro dia fiquei muito pensativo sobre a afirmação de Russell Shedd em uma entrevista a uma revista brasileira que circula em Massachusetts chamada Refletir. Pra falar a verdade não fiquei pensativo, mas triste, muito triste mesmo, porque eu sei que esse é o ‘X’ do problema no meio cristão brasileiro e no mundo. Segue abaixo a copia literal de um trecho da entrevista:

 

Refletir: Esta falta de convicção passa pela ausência de pregadores da graça de Deus?

Russell Shedd: Talvez haja pregação de graça barata. Deus é um Deus de leis. Toda a criação se baseia em leis, leis, leis, naturais, morais e espirituais. Toda causa tem um efeito. O que é a graça? É escapar do efeito da lei. Em vez de receber punição, castigo e morte, alguém vai me perdoar. Se eu pregar esta idéia com muita veemência e não colocar nada sobre a lei de Deus na criação, o que a pessoa vai pensar? Que Deus leva todo mundo para o céu. Não tem inferno, o purgatório já quase desapareceu – risos. O inferno também está desaparecendo, e daqui alguns anos ninguém mais vai falar no inferno. Isto significa que Deus é gracioso para com todo mundo, aliás, a Igreja Católica entrou na nesta fase. Eu tenho informações de um alto funcionário da Igreja Católica, dizendo que Deus é gracioso, então não devemos falar de outra coisa. Nunca fale para o pecador que ele é condenado, fale que ele é aceito por Deus. Deus aceita todo mundo.

Refletir: O cidadão vem do jeito que está, não se trata, não se cura, vem baseado somente na graça.

Russell Shedd: Exatamente, é a graça barata.

 

Após ler essa entrevista, comentei com meus amigos. O primeiro deles começou a discutir dizendo que não podemos esquecer a lei, que ela não acabou, pois Jesus Cristo veio para cumpri-la. O segundo me perguntou se eu acreditava na Lei. Eu respondi que “não”, que não acreditava na lei para a minha salvação, e ele somente respondeu: ‘Arreda-te de mim, satanás.’

Quanto a mim, eu acredito na Graça. Por ela eu fui salvo. Só que quando ouço essas afirmações já não sei se o que creio e certo. O próprio texto de Romanos 7 soa confuso para mim.

Pastor Caio, desculpe a minha ignorância, mas eu chego a ficar aflito quando penso nisso. Por favor, me escreva.

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Resposta:

Meu amado amigo: Graça e Paz!

“O fim da lei é Cristo, para a justiça de todo aquele que crê”.

“A Lei foi dada como ‘aio’ para nos trazer até Cristo”.

“Os dons que recebestes, os recebestes pela Lei ou pela pregação da fé?”

“Pela Graça sois salvos, mediante a fé, e isto não vem de vós, não vem de obras, para que ninguém se glorie”.

Infelizmente, a fim de lhe dar uma resposta honesta, terei que fazer comentários aos pensamentos do “Entrevistado”, porém, quero que saiba que eles nada contêm de pessoal.

No entanto, não tenho reservas quando se trata de afirmar, sem rodeios, o significado e as implicações do Evangelho da Graça de Deus. Meu querido, há muita “graça barata” mesmo; e, acerca dela, esse site faz veementes advertências, inclusive no texto “A Graça Brincalhona”, que você acha em Artigos, eu creio.

Mas não é desse extremo, de fato, aquilo acerca do que o entrevistado está falando. Na realidade ele se insurge, de modo ambíguo, inclusive citando a Igreja Católica como desvio de foco, é acerca da mensagem da Graça mesmo. Sim, ele se insurge contra a Graça, não apenas contra a “graça barata”.

O entrevistado, apesar de saber ler em grego, infelizmente, até hoje, nada conheceu muito além da letra, pois, é impossível que alguém que conheça a Palavra em seu espírito (as cartas de Paulo, por exemplo), não como texto condicionado pela “teologia”, mas como revelação clara e explicita, possa confundir as coisas como ele o fez, inclusive misturando as leis físicas do universo com a Lei da Graça, que opera em sentido oposto às leis da natureza, visto que, na natureza, o que prevalece é a falta de misericórdia—a sobrevivência dos mais aptos, ou a implacabilidade da Lei da Gravidade—; demonstrando, assim, o tal entrevistado, não ter até hoje compreendido a real diferença entre as coisas.

O ladrão que morria ao lado de Jesus, arrependido, numa cruz, experimentou até o fim, diante dos homens, as conseqüências da transgressão da lei, e não foi salvo de tais conseqüências, por isso, morreu ali. No entanto, enquanto tal lei estava se cumprindo, matando-o numa cruz, outra lei estava em operação, não livrando-o das conseqüências históricas de sua transgressão, mas redimindo-o para sempre, diante de Deus, de toda e qualquer transgressão, prometendo e cumprindo o fato dos fatos: que em Jesus a lei morreu para a condenação de todo aquele que crê, por isso, o transgressor estava no Paraíso.

Há quem não goste disso, mas saiba: é verdade! Sugiro que você leia Romanos, Gálatas, Colossenses, Hebreus, etc… de cabo a rabo, em voz alta, e deixando a mensagem entrar em você. Sim, faça isto sem pensar em “teologia” ou em “letras”, mas no que está dito, e conforme o espírito da Palavra. Meu irmão, eu duvido que você chegue ao final com alguma dúvida.

O entrevistado em questão é bom de grego e ruim de confiança nos feitos absolutos da Cruz. A ele, com todo respeito, apenas pergunto: “Tu és mestre em Israel e não compreendes estas coisas?”

A divisão, infelizmente, começou. E todos terão que decidir se se gloriarão apenas na Cruz de Cristo ou se tentarão continuar a fazer “barganhas com a Lei e com a Moral” como caminhos de “validação” da salvação acerca da qual o próprio Jesus declarou: “Está Consumado!”

Para tais pessoas, Jesus é quase tudo, a Graça é quase tudo… mas, sem a Lei, ninguém pode, de fato, para eles, agradar a Deus! Eu é que digo— e o faço com toda ousadia e intrepidez, e disposto que estou a enfrentar, em campo aberto, qualquer desses “quase-crentes”, em qualquer que seja a arena de debates que eles desejem— que eles me são Anátema!

A questão é que eles não têm coragem do enfrentamento e do debate, pois, lá no fundo, sabem que seriam esmagados pela verdade do Evangelho, o qual, até o dia de hoje, tem sido apenas parcialmente crido por eles, posto que a verdade é escandalosa demais para mentes tão aferradas à justiça própria, como parece ser o caso do entrevistado.

Quanto a mim, morri com Cristo e com Ele estou assentado nos lugares celestiais, sendo que Nele, também morreu a Lei que me matava; e de tal modo que fiquei livre para contrair núpcias com a Graça, conforme Romanos 7. Em Cristo fiquei viúvo da Lei para sempre!

O que vem primeiro? Meu irmão, me responda: Se o Cordeiro de Deus foi imolado antes da fundação do mundo, o que vem primeiro, a Lei ou a Graça?

Receba meu carinho e minhas orações para que você não “caia da Graça”.

Nele, em Quem tudo está feito,

 

Caio

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Para entender melhor o significado de “graça barata” leia o texto que segue, escrito por meu filho Ciro e por mim, logo depois que lemos a sua carta.

Uma frase, para ter sentido lógico, precisa obedecer a algumas regras. Essas incluem o princípio da identidade, pelo qual um termo tem que ser o que é e não pode nem deixar de ser o que é nem ser o que não é. Uma frase também deve obedecer a regra da não contradição: um termo não pode ser e não ser o que é ao mesmo tempo.

Ora, Graça é, teologicamente falando, definida como favor imerecido. Existe ampla evidência bíblica para essa definição. Graça é, portanto, uma intervenção divina em favor do ser humano exercendo sobre ele Sua misericórdia, independentemente de qualquer ato de justiça própria que tal ser humano possa fazer. Isso fica clarificado em nossa expressão do cotidiano: “De graça”, querendo se referir a algo que não envolve custo ou um relação de troca monetária ou de qualquer outra natureza.

Do mesmo modo, Barato é definido como algo com um custo baixo ou que é comprado abaixo do seu valor de mercado. O adjetivo Barato, então, já pelo princípio da identidade, assume a existência de um custo ou relação de troca na obtenção do substantivo que qualifica.

Sendo assim, a frase Graça Barata não pode existir pelas leis da lógica, já que, como vimos, Graça é algo que não envolve troca, e porque também, como demonstrado acima, Barato é algo que define uma relação de troca. Portanto, tal frase acaba por infrigir o princípio da não contradição, já que para fazer sentido o termo Graça teria de ser e não ser uma coisa ao mesmo tempo. No instante em que adicionamos à palavra graça o adjetivo barata, a palavra graça deixa de significar o que ela de fato significa. Ela passa assim a ser o que não é! Se é graça, então não pode ter custo, se tem custo (mesmo baixo) não pode ser graça.

Entendo, entretanto, que muitas vezes a graça que não tem custo tem valor! E muitas vezes o valor de tal graça não é aproveitado pelo ser humano, acostumado apenas a atrelar valor a relações de troca. Porém não é possível pregar uma graça que não seja plenamente Graça! O ser humano deve aprender a atribuir valor aquilo que é feito em seu favor imerecidamente e utilizar a Graça Divina em seu favor.

Jacques Ellul diz que a Graça é um elemento absolutamente inaceitável do evangelho. De fato ele diz que pregar a Graça causa revolta e repulsa na humanidade, que está condicionada a tentar obter por seus próprios méritos qualquer benefício. Talvez uma expressão melhor seria “Graça desvalorizada” para definir aquilo que Dietrich Bonhoeffer queria dizer quando falou da “graça barata”: a Graça que não é valorizada pelo ser humano simplesmente por ser… de graça…

Existem algumas pessoas que entram pelo caminho da “graça desvalorizada”, e a igreja, apavorada com a liberdade que a pregação da verdadeira Graça de Deus pode criar, prefere então usar essa desculpa (a das pessoas que entram pelo caminho da “graça desvalorizada”) para criar todo um sistema de controle, pregando uma “graça” controlada de um deus que não tem mais o direito de ser Deus, e que é forçado a obedecer leis. Um deus ao qual foi imposto pela religião uma Magna Carta da mesma forma que os nobres a impuseram ao Rei da Inglaterra na Idade Média.

Hoje em dia vejo poucas pessoas pregando a Graça. Mesmo os que o fazem pregam uma graça que não é de fato, Graça. Na verdadeira Graça de Deus existe perfeita Justiça, pois apenas Deus pode exercer justiça sobre qualquer ser humano. Apenas Deus tem a autoridade para ser justo e justificador de todo aquele que crê. E na Graça nós vemos a verdadeira justiça de Deus, tal como demonstrado em Jesus, que revela a Justiça total, em contraste com a injustiça da lei. A justiça de Jesus é sempre uma justiça maior do que a dos escribas e fariseus que era só legalismo.

A leitura do Evangelho é a demonstração de como a Justiça de Jesus é um escândalo para a Lei, assim como a Graça é escândalo para a religião cristã hoje em dia.

 

Ciro D’Araújo e seu pai, Caio