APAIXONADO PELA PAIXÃO
Caio,
Eu sei que você é um cara bastante ocupado — e bota ocupado nisso!—, mas também procurei falar contigo porque sei que você é uma pessoa bastante sensível para ouvir os nossos lamentos e nos dar uma palavra de consolo quando assim for necessário.
Sei que tem outras pessoas com problemas muito maiores do que o meu —e bota maiores nisso! Mas, deixando de estar rodeando, vamos direto aos fatos.
Caio, sou uma cara casado, pai de duas filhas lindas, mas estou amando outra pessoa… E o mais interessante nisso tudo é que ela não é minha namorada nem amante, simplesmente amiga. E dessa amizade nasceu este sentimento que me tem feito sofrer bastante.
Eu fico me perguntando como pode você estar sofrendo por alguém com quem você não tem nenhum relacionamento. E quando eu te digo que estou sofrendo é porque eu estou mesmo.
Se você quiser e tiver tempo, meu amigo, gostaria de ouvir de você algo que possa me fazer refletir e pensar, pois você tem sido uma bênção nas mãos do nosso Deus e Pai, em que temos graça e misericórdia.
Um forte abraço. (Quando te chamo de amigo é porque você tem sido um amigo para todos os que navegam neste site.)
Resposta:
Meu amigo: Graça e Paz!
O coração é estranho e nem sempre digno de toda confiança, pois, ainda que muitas vezes ele nos guie por caminhos de vida, também tem o poder de nos levar pelo caminho do auto-engano. Do coração procedem as fontes da vida, e também as fontes da corrupção. Portanto, o coração tem que ser um servo, e não o senhor da existência.
Quando digo que ele tem que ser um servo, não digo que a “razão fria” é que tem que prevalecer, mas sim a verdade conforme o Evangelho.
Estou dizendo isto tudo apenas porque seu problema tem a ver com seu coração. E quando digo “problema”, o faço porque é um problema ser casado, ter duas filhas lindas, e amar uma outra mulher de quem se é amigo.
O que fazer? Ora, primeiro deve-se saber que é possível que o coração se apaixone de modo indiscriminado, especialmente se está carente, como deve ser o seu caso. Quando isso acontece, a dor da paixão pode doer no coração com tanta intensidade que a pessoa pensa que não irá suportar. E ainda: quanto mais impossível for o “amor”, mas intensa será a “sensação de paixão”, posto que tais sentimentos se “alimentam da impossibilidade”.
Entretanto, leve a moça para casa, coma um saco de sal com ela, veja-a acordar-se todos os dias ao seu lado, disponha sexualmente dela todas as noites e quantas vezes desejar, exponha-se a ela como mãe e dona de casa, assista ao cansaço dela nos afazeres do cotidiano, e, então, somente depois disso tudo, me diga se a “paixão” continua “intacta”.
É muito fácil ficar apaixonado por quem existe para nós apenas como bom papo, boa amizade, bom perfume, e boas coisas… Então, muitas vezes, o indivíduo “joga tudo pro alto” apenas para descobrir que amava uma projeção, uma vontade de amar, um amor pelo próprio amor, mas não um ser humano real; posto que para se amar alguém de verdade, tem-se que ficar exposto a tal pessoa de fato, e não apenas na hora das “guloseimas fraternas”.
Esse tipo de paixão só é curado pela consciência! E mais: se você puser a consciência acima do sentimento pelo sentimento, então, logo a coisa voltará apenas a ter sua própria medida de realidade; e, nesse dia, você descobrirá que a moça não é uma deusa, mas apenas uma mulher que, à distancia, encheu um buraco em seu coração; e que não foi cheio pela moça mesma, mas pela sim pela sua própria decisão de se apaixonar.
Além disso, existe um certo vício em sofrer de paixões. De tal modo que certas pessoas não sentem que são “sensíveis” a menos que sofram de amor. Ora, nesse caso, odeia-se a dor na mesma medida em que se pensa que não se pode viver sem ela. Assim, você está louco para parar de sofrer —preferencialmente recebendo a chance de “tê-la”— ao mesmo tempo em que não agüenta mais sentir o que sente. Pois, quem deseja amar à distancia?
Não sei sua idade, nem quanto tempo de casado você tem, nem tampouco se você ama a sua esposa, ou o que aconteceu entre vocês —coisas essas que me seriam muito importante saber. No entanto, alguma coisa me diz que você está apenas apaixonado pelo amor, pela vontade de se rejuvenescer, pelo desejo de experimentar algo novo, pela disposição de explorar os limites de seu coração.
É raro ouvir um homem elogiando a “sensibilidade” de outro homem, conforme você fez em relação a mim. E, quando li aquilo, me veio imediatamente à alma a impressão de que você escrevia também para um homem que poderia, pelas experiências, lhe dizer algo sobre o coração, a paixão e o amor. No entanto, também “li” em sua carta algo cerca da sua vontade de ser entendido, posto que você mesmo nem sabe o que está lhe acontecendo.
Pois bem, se cabe dizer alguma coisa a você, o que lhe digo é que você deve saber que está apaixonado pelo seu poder de sofrer a dor de uma paixão, pois, por mais isso lhe faça sofrer, também lhe dá a horrível sensação de estar “vivo” —ainda que seja “vivo em dor”. Seria mais honesto e sincero você pensar acerca do que está lhe acontecendo não como algo ligado à moça-amiga, mas ao seu próprio coração, o qual, pela carência, está assumindo o controle de seu caminho, tirando de você a autopercepção e entregando você à paixão pela paixão.
É também fundamental que você busque em sua alma a razão dessa carência. Portanto, ao invés de atribuir tais poderes arrebatadores à moça-amiga, olhe para dentro de sua própria alma, visto que essa moça é apenas do tamanho de sua imensa carência afetiva, ou, quem sabe, de sua necessidade de novidade.
Não vale a pena deixar a carência separar pessoas que um dia se casaram sem que antes se busque saber se entre elas existe a chance da renovação dos interesses conjugais e da amizade que mantém qualquer casamento. Portanto, me escreva dizendo o que aconteceu, posto que ninguém que um dia disse que amou —se esse tiver sido o seu caso quando decidiu casar-se— apenas deixa de amar… impressionando-se por outra pessoa cujas características relacionais são inteiramente platônicas.
Pense no que lhe falei e me escreva!
Nele, que vê nosso coração e para quem todas as coisas estão patentes e descobertas,
Caio