O ANTICRISTO DE FRIEDRICH NIETZSCHE



—– Original Message —– From: O ANTICRISTO DE FRIEDRICH NIETZSCHE To: Sent: Monday, April 11, 2005 4:32 PM Subject: aprendi com o Anticristo Caro Rev. Caio, Recentemente eu li “O Anticristo” de Friedrich Wilhelm Nietzsche, uma paulada só no cristianismo. Antes de iniciar a leitura eu estava com receio; receio de que o que eu leria—já sentindo pelo título—, me colocaria diante de conceitos que poderiam me abalar na fé. Mas conhecer é um ato de liberdade que tem de ser visto como ato de crescimento, não que devamos conhecer de tudo para que possamos de tudo saber. Não precisamos experimentar o vácuo para sabermos que vamos ficar sem ar, o conceito em si mesmo já nos demonstra a realidade e onde vale ou não conhecer pela experiência para validar as desconfianças do não saber. Fiquei impressionado com partes da obra de Nietzsche, que de anticristo mesmo só tem—pelo menos até onde entendi—, um discurso contra a instituição que se fez depois da Cruz. Acho que ele mais entendeu o Cristo que muitos cristãos, e se dizendo “espírito livre”—como também intitulou Jesus—se tornou um cristão dentro dos seus próprios conceitos. Transcrevi algumas partes da obra onde ele fala sobre a “Boa Nova” e de como ele vê o Salvador. Uma visão mais do que atual, pois tenho visto nas suas pregações muita coisa relacionada com a liberdade do “ser” que me parece ser um ponto de contato com o filósofo (me perdoe se eu estiver enganado), e de como ele viu Jesus num contexto de iluminação. Depois de ler e refletir, fui direto rever o filme “A Paixão de Cristo” e percebi que em nenhum momento o Jesus apresentado por Gibson expressa normas de conduta, regras e alegorias de punição. No filme ele só fala e demonstra amor e tolerância, um Jesus bem mais real do que o que vemos em certas igrejas. Não sei como, mas o receio que tinha inicialmente de ler algo aparentemente demolidor de fé se transformou em certeza inversa—e ainda, de que Jesus é muito mais do que conseguimos alcançar. E também, não posso negar, que o sentimento expresso por Nietzsche — “Não posso, neste momento, evitar um suspiro. Há dias em que sou visitado por um sentimento mais negro que a mais negra melancolia – o desprezo pelos homens” — anda rondando o meu coração. Mas, Jesus se faz mais presente ainda quando nos diz que devemos amar o próximo como a nós mesmos – e creio que ele sabia muito bem de que este sentimento existe como esteio de certos entendimentos. Maior “ELE” fica em meu coração quando percebo que a tarefa não é tão simples como as palavras podem indicar. Revendo o filme de Gibson, já pela enésima vez, ao final tive um sentimento de que Jesus foi a maior denúncia que Deus fez sobre a humanidade. Sua vida e morte foi a demonstração do vácuo espiritual em que vivemos e no qual não podemos respirar. Pelo absurdo da Cruz fomos colocados diante de nós mesmos onde a maior negação é a própria humanidade. E assim se consumou e consumado está. Diante de Jesus o que resta é este pleno desafio – amarmos uns aos como ELE nos amou. A salvação está em deixar Pilatos com a sua própria pergunta – o que é a verdade?…; pois somente ele poderia responder a si mesmo esta questão. E o “espírito livre” de Friedrich Wilhelm Nietzsche já deve ter encontrado aquele que lhe deu esta liberdade. Um abraço, Ricardo Axer ____________________________________________________________________________ Trechos do “O Anticristo” XXXII Repito que me oponho a todos os esforços para introduzir o fanatismo na figura do Salvador: a própria palavra imperieux, usada por Renan, sozinha é suficiente para anular o tipo. A “Boa Nova” nos diz simplesmente que não existem mais contradições; o reino de Deus pertence às crianças; a fé anunciada aqui não é mais conquistada por lutas – está ao alcance das mãos, existiu desde o princípio, é um tipo de infantilidade que se refugiou no espiritual. Tal puberdade retardada e incompleta dos organismos é familiar aos fisiologistas como sintoma da degeneração. A fé desse tipo não é furiosa, não denuncia, não se defende: não empunha “espada” – não entende como poderia um dia colocar homem contra homem. Não se manifesta através de milagres, recompensas, promessas ou “escrituras”: é, do principio ao fim, seu próprio milagre, sua própria recompensa, sua própria promessa, seu próprio “reino de Deus”. Essa fé não se formula – simplesmente vive, e assim guarda-se contra fórmulas. Com certeza, a casualidade do ambiente, da formação educacional dá proeminência aos conceitos de certa espécie: no cristianismo primitivo encontramos apenas noções de caráter judaico-semítico (- a de comer e beber em comunhão pertence a esta categoria – uma idéia que, como tudo que é judaico, foi severamente fustigada pela Igreja). Cuidemo-nos para não ver nisso tudo mais que uma linguagem simbólica, uma semântica, uma oportunidade para falar em parábolas. A teoria de que nenhuma palavra deve ser tomada ao pé da letra era um pressuposto para que este Anti-realista pudesse discursar. Colocado entre hindus teria usado os conceitos de Shanhya, e entre chineses os de Lao Tsé – e em ambos os casos isso não faria qualquer diferença a Ele. Tomando uma pequena liberdade no uso das palavras, alguém poderia de fato chamar Jesus de “espírito livre” – não lhe importa o que está estabelecido: a palavra mata, tudo aquilo que é estabelecido mata. A noção de “vida” como uma experiência, como apenas ele a concebe, a seu ver encontra-se em oposição a todo tipo de palavra, fórmula, lei, crença e dogma. Fala apenas de coisas interiores: “vida”, ou “verdade”, ou “luz”, são suas palavras para o mundo interior… XXXIII Em toda a psicologia dos Evangelhos os conceitos de culpa e punição estão ausentes, e o mesmo vale para o de recompensa. O “pecado”, que significa tudo aquilo que distancia o homem de Deus, é abolido – essa é precisamente a “Boa Nova”. A felicidade eterna não está meramente prometida, nem vinculada a condições: é concebida como a única realidade – todo o restante não são mais que sinais úteis para falar dela. Os resultados de tal ponto de vista projetam-se em um novo estilo de vida, um estilo de vida especialmente evangélico. Não é a “fé” que o distingue do cristão; a distinção se estabelece através da maneira de agir; ele age diferentemente. Não oferece resistência, nem em palavras, nem em seu coração, àqueles que lhe são opositores. Não vê diferença entre estrangeiros e conterrâneos, judeus e pagãos (“próximo”, é claro, significa correligionário, judeu). Não se irrita com ninguém, não despreza ninguém. Não apela às cortes de justiça nem se submete às suas decisões (“não prestar juramento”. Nunca, quaisquer sejam as circunstâncias, se divorcia de sua esposa, mesmo que possua provas de sua infidelidade. No fundo, tudo isso é um princípio; tudo surge de um instinto. – A vida do salvador foi simplesmente professar essa prática – e também em sua morte… Não precisava mais de qualquer formula ou ritual em suas relações com Deus – nem sequer da oração. Se compreendo alguma coisa sobre esse grande simbolista, é isto: que considerava apenas realidades subjetivas como reais, como “verdades” – que viu todo o resto, todo o natural, temporal, espacial e histórico apenas como símbolos, como material para parábolas. O conceito de “Filho de Deus” não designa uma pessoa concreta na história, um indivíduo isolado e definido, mas um fato “eterno”, um símbolo psicológico desvinculado da noção de tempo. O mesmo é válido, no sentido mais elevado, para o Deus desse típico simbolista, para o “reino de Deus” e para a “filiação divina”. Nada poderia ser mais acristão que as cruas noções eclesiásticas de um Deus como pessoa, de um “reino de Deus” vindouro, de um “reino dos céus” no além e de um “filho de Deus” como segunda pessoa da Trindade. Isso tudo – perdoem-me a expressão – é como soco no olho (e que olho!) do Evangelho: um desrespeito aos símbolos elevado a um cinismo histórico e mundial… Todavia é suficientemente óbvio o significado dos símbolos “Pai” e “Filho” – não para todos, é claro -: a palavra “Filho” expressa a entrada em um sentimento de transformação de todas as coisas (beatitude); “Pai” expressa esse próprio sentimento – a sensação da eternidade e perfeição. Envergonho-me de lembrar o que a Igreja fez com esse simbolismo: ela não colocou uma história de Anfitrião no limiar da “fé” cristã? E um dogma da “imaculada conceição” ainda por cima?… – Com isso conseguiu apenas macular a concepção… O “reino dos céus” é um estado de espírito – não algo que virá “além do mundo” ou “após a morte”. Toda a idéia de morte natural está ausente nos Evangelhos: a morte não é uma ponte, não é uma passagem; está ausente porque pertence a um mundo bastante diferente, um mundo apenas aparente, apenas útil enquanto símbolo. A “hora da morte” não é uma idéia cristã – “horas”, tempo, a vida física e suas crises são inexistentes para o mestre da “Boa Nova”… O “reino de Deus” não é uma coisa pela qual os homens aguardam: não teve um ontem nem terá um amanhã, não virá em um “milênio” – é uma experiência do coração, está em toda parte e não está em parte alguma… XXXVI Nós, espíritos livres – nós somos os primeiros a possuir os pré-requisitos para entender o que, por dezenove séculos, permaneceu incompreendido – temos aquele instinto e paixão pela integridade que declara uma guerra muito mais ferrenha contra a “sagrada mentira” que contra todas as outras mentiras… A humanidade estava indizivelmente distante de nossa benevolente e cautelosa neutralidade, de nossa disciplina de espírito que sozinha torna possível solucionar coisas tão estranhas e sutis: o que os homens sempre buscaram, com descarado egoísmo, foi sua própria vantagem; criaram a Igreja a partir da negação dos Evangelhos… Todos que procurassem por sinais de uma divindade irônica que maneja os cordéis por detrás do grande drama da existência não encontrariam pequena evidência neste estupendo ponto de interrogação chamado cristianismo. A humanidade ajoelha-se exatamente perante a antítese do que era a origem, o significado e a lei dos Evangelhos – santificaram no conceito de “Igreja” justamente o que o “portador da Boa Nova” considerava abaixo si, atrás de si – seria vão procurar por um melhor exemplo de ironia histórico e mundial. XXXVII Nossa época orgulha-se de seu senso histórico: como, então, se permitiu acreditar que a grosseira fábula do fazedor de milagres e Salvador constitui as origens do cristianismo – e que tudo nele de espiritual e simbólico surgiu apenas posteriormente? Muito pelo contrário, toda a história do cristianismo – da morte na cruz em diante – é a história de uma incompreensão progressivamente grosseira de um simbolismo original. Com toda a difusão do cristianismo entre massas mais vastas e incultas, até mesmo incapazes de compreender os princípios dos quais nasceu, surgiu a necessidade de torna-lo mais vulgar e bárbaro – absorveu os ensinamentos e rituais de todos cultos subterrâneos do imperium Romanum e as absurdidades engendradas por todo tipo de raciocínio doentio. Era o destino do cristianismo que sua fé se tornasse tão doentia, baixa e vulgar quanto as necessidades doentias, baixas e vulgares que tinha de administrar. O barbarismo mórbido finalmente ascende ao poder com a Igreja – a Igreja, esta encarnação da hostilidade mortal contra toda a honestidade, toda grandeza de alma, toda disciplina do espírito, toda humanidade espontânea e bondosa. – Valores cristãos – valores nobres: apenas nós, espíritos livres, restabelecemos a maior das antíteses em matéria de valores!… XXXVIII Não posso, neste momento, evitar um suspiro. Há dias em que sou visitado por um sentimento mais negro que a mais negra melancolia – o desprezo pelos homens. Que não haja qualquer dúvida sobre o que desprezo, sobre quem desprezo: é o homem de hoje, do qual desgraçadamente sou contemporâneo. O homem de hoje – seu hálito podre me asfixia!… Em relação ao passado, como todos estudiosos, tenho muita tolerância, ou seja, um generoso autocontrole: com uma melancólica precaução atravesso milênios inteiros de mundo-manicômio, chamem isso de “cristianismo”, “fé cristã” ou “Igreja cristã”, como desejaram – tomo o cuidado de não responsabilizar a humanidade por sua demência. _________________________________________________________________________ Querido Ricardo: Graça, Paz e Verdade! Alguém escreveu: “Deus está morto!”— assinado Friedrich Wilhelm Nietzsche Veio outro alguém e escreveu: “Nietzsche está morto!”— assinado Deus. É obvio que Nietzsche não cria na morte de Deus-Deus. Aliás, para ele, essa não era uma questão passível de comprovação ou discussão, nem para afirmar e nem para negar. Nietzsche sabia que assim como a verdade, Deus só pode ser provado existencialmente, e, jamais elucubrado ou sistematizado. Quando Nietzsche declarou que Deus estava morto, ele se referia ao ‘Deus do cristianismo’, o qual, já nasceu morto; posto que surgiu como uma criação humana fadada ao esclerosamento e à morte. A declaração de Nietzsche também tem seus próprios fundamentos histórico-psicológicos. Ele viu o irmão morrer e quase matar o pai de dor com sua morte. Viu o pai, um pastor, se angustiar com a irrelevância do cristianismo. Viu o pai, quando Nietzsche ainda era adolescente, morrer e ser sepultado; enquanto em sua alma de criança os sentimentos, com a morte do pai, eram também sentimentos que equivaliam à ‘morte de Deus’; de um ‘Deus’ matável; portanto, morrível. A liberdade total na qual Nietzsche buscou viver gerou sua própria insanidade, gradualmente. Uma mente que faz questão de se chamar de “mente livre”, significando isso, sem referencia alguma, não tem como se manter sã. A meu ver essa é a razão pela qual Nietzsche é tão contraditório mesmo: ele não fazia a menor força para ser coerente com nada. E, num certo sentido, tanto não queria quanto não podia; do contrário, deixaria de ser “espírito livre”, conforme ele mesmo propunha. Nele a gente encontra pérolas maravilhosas, e que podem até animar a sua fé, como foi o caso. Mas também se pode encontrar um nível tão profundo de amargura e angustia, que não tendo uma referencia de amor para lhe servir de limite, o faz também dizer bobagens impensáveis. Sempre fui carinhoso com Nietzsche. Entendi sua alma e sua angustia, especialmente à luz de sua vida, e nem tanto em razão de sua obra literária, da qual gosto de muitas coisas, e me canso de outras tantas. Vejo os comentarista dizendo que ninguém entende Nietzsche; ou que ele é mal compreendido; tendo, por isso, sido “usado” para animar desde os interesses nazistas até o niilismo filosófico do século XX. A verdade, todavia, é que Nietzsche não faz sentido como um todo, mas apenas topicamente. Ele tenta manter uma coerência na demência, mas se trai toda hora quando comparado com ele próprio em outros lugares. O fato é Nietzsche nos mostra que nenhum homem consegue ser “espírito livre” se por isso se pensar em alguém que não tem em nada sua referencia, nem no amor, do qual, muitas vezes, Nietzsche desdenha em vários lugares e em várias outras obras dele. Certamente ele está sob as misericórdias de Jesus. E hoje ele sabe do Deus pessoal, não como uma categoria congelada de uma Existência que sabe de Si e que á capaz de amar. Mas sim como Amor mesmo. Deus não é uma pessoa que ama. Porque Ele é amor é que Ele é pessoal, mas não uma Pessoa Fixa, conforme nossas categorias de pessoalidade, todas tendo o homem como referencia de “pessoa”. No fim, sem ter sido amado pela única mulher que amou, amargurado e infeliz com a vida, carregado de muitas amarguras, sem ter para a mente as referencias do amor que trás sanidade, Nietzsche viu um cavalo sendo chicoteado na cidade de Turin, e tão angustiado ficou, que correu para o animal, abraçou-o; e nunca mais voltou a si nos próximos quase doze anos. O intrigante é que há uma foto da mulher que ele amou, e que preferiu um de seus amigos para marido, assentada numa charrete chicoteando a Nietzsche e ao seu amigo, futuro marido dela. Naquele abraço ao cavalo sem amor Nietzsche abraçou a si mesmo, e não mais voltou. A melhor coisa que existe é chegar à maturidade da fé. Lugar de onde a gente pode ver tudo, examinar tudo, e apenas reter o que é bom. E, sem dúvida, Nietzsche tem muita coisa boa e linda; e isso em meio aos seus delírios ensandecidos, muitas vezes. E todas essas coisas boas podem e precisam ser guardadas. Receba meu carinho e meu beijo! Nele, que muito amou Nietzsche, Caio