DE BENTO PARA CAIO: Carta de Betinho para a mulher, Maria

 

 

 

DE BENTO PARA CAIO: Carta de Betinho para a mulher, Maria

—– Original Message —–
From: DE BENTO PARA CAIO: Carta de Betinho para Maria – esposa dele!
To: [email protected]
Sent: Tuesday, December 26, 2006 8:08 AM
Subject: Carta de Betinho para Maria – esposa dele


Caio, querido amigo,


Vi esse trecho de uma carta escrita por Betinho para a mulher dele, Maria, e lembrei que você e Betinho eram grandes amigos. A carta parece ser verdadeira, haja vista ter sido publicada em vários sites, até em alguns governamentais de luta contra a AIDS.

Gostei muito de ver a forma como o Betinho encarou o amor, o sexo sob o estigma da AIDS e, principalmente, a maneira como ele fala da Morte.

Sei que uma carta como essa desmistifica muita coisa. Uma delas é aquele besteirol evangélico de que não se pode desfrutar amor conjugal sem a “benção” da igreja. Outra, é como o amor entre um casal pode assumir várias formas.

Por último, não pude deixar de notar a semelhança entre o que Betinho desejava como forma de morte e o que o Jorginho Guinle praticou como ritual no Copacabana Palace. A grande diferença está naquilo em que ambos escolheram como ideal de vida, não é?

Enfim, gostei muito de ler essa carta e espero que você também goste, caso não a conheça. Acho que a carta junto com uma análise sua daria um bom material para ser publicado no site.

Beijão saudoso

Bento Souto

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Carta escrita por Herbert de Souza (O Betinho) para sua mulher Maria; e lida um ano após sua morte, pelo ator Jonas Bloch, durante a cerimônia na CCBB:

Carta:

Este texto é para Maria ler depois da minha morte que, segundo meus cálculos, não deve demorar muito.

É uma declaração de amor.

Não tenho pressa em morrer, assim como não tenho pressa em terminar esta carta. Vou voltar a ela quantas vezes puder e trabalhar com carinho e cuidado cada palavra. Uma carta para Maria tem que ter todos os cuidados. Não quero uma carta triste, quero fazer dela também um pedaço de vida pela via de lembrança que é a nossa eternidade.

Nos conhecemos nas reuniões de AP (Ação Popular), em 1970, em pleno Maoísmo. Havia uma clima de sectarismo e medo nada propício para o amor. Antes de me aventurar andei fazendo umas sondagens e os sinais eram animadores, apesar de misteriosos.

Mas tínhamos que começar o namoro de alguma forma. Foi no ônibus da Vila das Belezas, em São Paulo. Saímos em direção ao fim da linha como quem busca um começo. E aí veio o primeiro beijo, sem jeito, espremido, mas gostoso, um beijo público. A barreira da distância estava rompida para dar começo a uma relação que já completou 26 anos!

O Maoísmo estava na China, nosso amor na São João. Era muito mais forte que qualquer ideologia. Era a vida em nós, tão sacrificada na clandestinidade sem sentido e sem futuro.

Fomos viver em um quarto e cozinha, minúsculos, nos fundos de uma casa pobre, perto da Igreja da Penha. No lugar cabia nossa cama, uma mesinha, coisas de cozinha e nada mais.

Mas como fizemos amor naquele tempo! Foi incrível e seguramente nunca tivemos tanto prazer.

Tempos de chumbo, de medo, de susto e insegurança. Medo de dia, amor de noite. Assim vivemos por quase um ano. Até que tudo começou a “cair”. Prisões, torturas, polícia por toda a parte, o inferno na nossa frente. Fomos para o Chile. E ali, chamado por Garcez para elaborar textos, acabei no agrado de Allende, que os usou em seus discursos oficiais.

Foi a primeira vez que eu vi amor virar discurso político… Depois passamos por muita coisa até voltar. Até que a anistia chegou e nos surpreendeu. E agora, o que fazer com o Brasil? Foi um turbilhão de emoções: o sonho virou realidade!
Era verdade, o Brasil era nosso de novo.

A primeira coisa foi comer tudo que não havíamos comido no exílio: angu! com galinha ao molho pardo, quiabo com carne moída, chuchu com maxixe, abóbora, cozido, feijoada. Um festival de saudades culinárias, um reencontro com o Brasil pela boca.

Uma das maiores emoções da minha vida foi ver o Henrique surgindo de dentro de você. Emoção sem fim e sem limite que me fez reencontrar a infância.

Depois do exílio, nossas vidas pareciam bem normais. Trabalhávamos; viajávamos nas férias, visitávamos os amigos, o Ibase funcionava, até a hemofilia parecia e havia dado uma trégua. Henrique crescia, Daniel aos poucos se reaproximava de mim, já como filho e amigo.

Mas como uma tragédia que vem às cegas e entra pelas nossas vidas, estávamos diante do que nunca esperei. A Aids. Em 1985, surge a notícia da epidemia que atingia homossexuais, drogados e hemofílicos. O pânico foi geral. Eu, é claro, havia entrado nessa.

Não bastava ter nascido mineiro, católico, hemofílico, maoísta e meio deficiente físico. Era necessário entrar na onda mundial, na praga do século, mortal, definitiva, sem cura, sem futuro e fatal. E foi aí que você, mais do que nunca, revelou que é capaz de superar a tragédia, sofrendo, mas enfrentando tudo e com um grande carinho e cuidado.

A Aids selou um amor mais forte e mais definitivo porque desafia tudo, o medo, a tentação do desespero, o desânimo diante do futuro. Continuar tudo apesar de tudo, o beijo, o carinho e a sensualidade.

Assumi publicamente minha condição de soropositivo e você me acompanhou. Nunca pôs um “senão” ou um comentário sobre cuidados necessários. Deu a mão e seguiu junto como se fosse metade de mim, inseparável. E foi.

Desde os tempos do cólera, da não esperança, da morte do Henfil e Chico, passando pelas crises que beiravam a morte até o coquetel que reabria as esperanças. Tempo curto para descrever, mas uma eternidade para se viver.

Um dos maiores problemas da Aids é o sexo. Ter relações com todos os cuidados ou não ter? Todos os cuidados são suficientes ou não se deve correr riscos com a pessoa amada? Passamos por todas as fases, desde o sexo com uma ou duas camisinhas até sexo nenhum, só carinho. Preferi a segurança total ao mínimo risco.

Parei, paramos e sem dramas, com carências, mas sem dramas, como se fosse normal viver contrariando tudo que aprendemos como homem e mulher, vivendo a sensualidade da música, da boa comida, da literatura, da invenção, dos pequenos prazeres e da paz.

Viver é muito mais que fazer sexo. Mas para se viver isso, é necessário que Maria também sinta assim e seja capaz dessa metamorfose como foi.

Para se falar de uma pessoa com total liberdade é necessário que uma esteja morta e eu sei que este será o meu caso. Irei ao meu enterro sem grandes penas e principalmente sem trabalho, carregado. Não tenho curiosidade para saber quando, mas sei que não demora muito.

Quero morrer em paz, na cama, sem dor, com Maria do meu lado e sem muitos amigos, porque a morte não é ocasião para se chorar, mas para celebrar um fim, uma história. Tenho muita pena das pessoas que morrem sozinhas ou mal acompanhadas, é morrer muitas vezes em uma só.

Morrer sem o outro é partir sozinho.

O olhar do outro é que te faz viver e descansar em paz.

O ideal é que pudesse morrer na minha cama e sem dor, tomando um saquê gelado, um bom vinho português ou uma cerveja gelada.

Te amo para sempre,

Betinho,

Itatiaia, janeiro de 1997″
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Resposta:


Amigo Bento: Graça, Paz e Saudade!


Tive apenas sete anos de relacionamento com o Betinho. Não vivíamos juntos, mas sempre que nos víamos, nos víamos; e sempre que falávamos, falávamos; e sempre que confessávamos, confessávamos; e sempre que precisamos um do outro em qualquer processo, o outro compareceu.

Quando ele lançou a campanha pela ética na política, estive junto.

Quando ele lançou a campanha contra a fome e a miséria, me chamou para ajudá-lo.

Quando levou ao Itamar a idéia do Lula de se criar uma “secretaria-programa” no Governo Federal, e que fosse o braço governamental da campanha contra a fome, criando-se o Consea (Conselho de Segurança Alimentar da Presidência da Republica) — me pediu para participar, me envolver e divulgar; e eu o fiz intensamente.

Quando inaugurei a Fábrica de Esperança, ele foi um dos maiores incentivadores e avalistas do mega-projeto.

Quando o Presidente Fernando Henrique, uma vez eleito, fez sua primeira viagem para fora de Brasília, foi ao Rio, e, no Rio, à Fábrica de Esperança. Só que eu não estaria lá. Pedi ao Betinho que me representasse, e ele o fez.

Quando Marcelo Alencar decidiu me atacar, crendo que eu seria candidato ao Governo do Estado do Rio, o Betinho foi o primeiro a erguer-se em minha defesa pública. E encarou o Governador.

Quando eu queria conseguir um parceiro para a Fábrica, mas não conhecia ninguém na empresa potencialmente parceira, muitas vezes o Betinho foi e abriu a porta.

E quando ia morrer, conversando comigo uns meses antes, e sempre falando do coração sem vacilação alguma, me disse que gostaria que eu participasse de seu funeral — o que veio a acontecer, pois, Maria, a querida Maria do Betinho, me pediu para que fizesse a cerimônia na Assembléia Legislativa do Rio, juntamente com frei Beto, grande amigo dele.

É uma pena que este seja um país sem memória e sem reverência para com vidas como a do Betinho!

Betinho foi um dos grandes seres humanos que encontrei na jornada!


Um beijo em você e em todos os seus amados!


Nele, que amou Betinho desde antes da fundação do mundo,



Caio