ATÉ OS “SILVEIRINHAS” VOS PRECEDEM…
Lc 7: 24-35 (leitura obrigatória)
Jesus estava falando de João Batista. Ergue-o ao nível do incomparável entre os homens (28a) e depois o reposiciona na perspectiva das Eras: a da Lei poderia gerar João como seu mais nobre homem, mas na Graça estabelecida no Reino de Deus, até o menor é maior do que João (28b).
Os publicanos e pecadores que se rendiam ao Evangelho estavam sendo transportados para uma dimensão que João, com toda sua justiça, não alcançara como paz para ser.
As pulsões de João eram de pura aflição. E ele foi íntegro até onde seu ser poderia ir sob aquelas demandas que pesavam sobre ele.
“Dos nascidos de mulher, ninguém é maior que João”. Ou seja: em seu estado de consciência natural o mundo nunca havia conhecido um ser mais possuído da missão de Deus que o Batista.
Então Jesus prossegue dizendo:
“Todo o povo o ouviu, e até os publicanos, reconheceram a justiça de Deus, tendo sido batizados com o batismo de João; mas os fariseus e os intérpretes da lei rejeitaram, quanto a si mesmos, o desígnio de Deus, não tendo sido batizados por ele”.
A seqüência mostra o mal-humor crônico dos lideres religiosos de Israel. Eram como meninos emburrados e que conseguiam implicar com tudo e todos. E mais: eram capazes de desgostar tanto da tese quanto da antítese. De João diziam ser ele um endemoninhado. De Jesus afirmavam ser ele um glutão, bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores (31-34).
A conclusão de Jesus era que todo o filho da sabedoria sabia identificar a presença da Graça de Deus nos dois extremos daqueles pólos díspares – considerando as exterioridades dos comportamentos e atitudes sociais praticadas por João e Jesus – e não tinha dificuldades em se alegrar com ambas as coisas, pois, sabia que procediam da mesma fonte: a sabedoria de Deus (35).
Bem, isto posto, quero, no entanto, falar de apenas um aspecto de tudo o que aqui está envolvido.
Impressionam-me duas coisas simples feitas por Jesus:
1. Os publicanos – os Silveirinhas de então – foram colocados como aqueles que habitando um pólo diametralmente oposto ao de João, foram também buscá-lo para serem batizados.
2. Os religiosos e seus teólogos, todavia, não buscaram a João a fim de serem batizados, sendo eles, ante os seus próprios olhos, aqueles que diziam saber de Deus.
Ora, entre nós batismo e renovação de vínculos com Deus é sempre algo para publicanos. Os seres estáveis e maduros sempre se julgam para além da necessidade do arrependimento e da renovação de seus seres – especialmente se, para isto, tiverem que freqüentar uma fila de Silveirinhas!
Ora, isto determina boa parte da atitude religiosa entre os cristãos ainda hoje. A pregação de arrependimento – que nem existe mais – é, na melhor das hipóteses, algo a ser anunciado aos “publicanos e pecadores”.
Entre nós a mensagem é para “eles” – por isto é nada nos atinge mais o ser!
Para Jesus a mensagem era até para os publicanos e pecadores. O que era “até para…”, entre nós, se transformou no “somente para…”.
O que atingia até aqueles que estavam no “pólo do até”, passou a ser a única finalidade da pregação cristã.
Quando o Evangelho passa a não ser para mim, eu passo a ser para mim mesmo. Daí em diante ninguém se negará jamais a si mesmo.
Até a “negação” para ser conforme a agenda “determinada” por nós mesmos, para nós mesmos, e, com mais crueldade, para os outros.
É por isto que crente não se arrepende, a menos que seja flagrado em algo que, como comportamento, seja apenas uma imitação dos pecados dos publicanos!
Do contrário, não há necessidade de se buscar metanóia¹, pois, crê-se que isso é um evento, não um estado de espírito que deve ser parte de toda a existência.
Assim, Jesus diz que os religiosos e os seus teólogos é que deveriam ter puxado a fila quando João começou a pregar.
O Reino de Deus é sempre assim! “Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam”.
É sempre entre aqueles que não são vistos como filhos onde Deus é mais honrado como Pai (Lc 7: 1-10; 7: 36-50)—conforme os contextos antecedente e imediatos do texto de nossa reflexão, isto para não irmos mais longe.
Minha pergunta é: de onde vem e de onde nasce esse espírito de superioridade que faz com que os que obviamente deveriam “reconhecer a justiça de Deus” não a reconheçam?
Ora, há um “quanto a si mesmos” desastroso no diagnóstico feito por Jesus (30).
É esse “quanto a si mesmos” o que inviabiliza a alma para o discernimento da Palavra de Deus no dia chamado Hoje.
Quem tem esse “software” rodando no sistema perde a capacidade de fazer qualquer outra leitura.
O “disco-rígido” ficou pedrado.
Nenhum programa novo pode ser instalado nele.
E também não há memória “ram” e nem possibilidade de expansão de memória.
A tela de seus seres congelou.
Talvez sejam salvos se houver parada total de energia e a máquina seja “desligada”. Aí, talvez, haja um “auto-search for errors” e algo seja detectado.
Quem tem um “quanto a si mesmo” rodando na alma não reconhece mais a Graça e nem se abre para as suas muitas faces, ainda que díspares entre si – pelo menos no nível da aparência.
Jesus sugeriu que os religiosos e teólogos todos se rebatizassem no batismo de arrependimento. Aliás, mais do que ninguém, diz Jesus, esses deveriam ser o primeiros. Quem sabe muito em Deus não se põe em nenhum lugar de superioridade espiritual. Ao contrário, quanto mais alguém genuinamente sabe de Deus, mais aberto fica para entrar em todas as filas propostas pela Graça – não como um caminho humano, mas como uma disposição de permanente estado de auto-revisão diante de Deus.
Dessa forma é que ouso aqui fazer a seguinte afirmação:
Não há em nenhuma esquina de meretrizes do mundo ou em nenhum porão gay do planeta um lugar onde mais o evangelho precise ser pregado que na “igreja”.
É na “igreja” o lugar onde o Evangelho é para os “outros”.
É para os publicanos e pecadores!
Nós, os da “igreja”, uma vez “salvos”, não precisamos de mais nada – a não ser de exterioridade de comportamento, que são nossas indumentárias farisaicas!
Os publicanos é que precisam ser evangelizados, segundo a “igreja”.
Que tristeza!
Não enxergamos nunca que tanto a Boa Nova quanto o Juízo sempre começam pela Casa de Deus!
E o maior Juízo que recaí sobre a Casa de Deus é aquele que é fruto dessa arrogância – desse “quanto a si mesmos” – que é a atitude prevalente em nossos corações.
Jesus diz aqui que a Boa Nova pode chegar até aos Silverinhas, mas é chocante como não alcança pastores, bispos, apóstolos e santos evangélicos, tanto quanto não alcançava os santos judaicos.
O que pode nos salvar disto?
Paulo diz:
“Fiel é a Palavra, e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo salvar os pecadores dos quais eu sou o principal”.
Para nós essa declaração soa como uma espécie de modéstia apostólica.
A questão é: já lhe ocorreu que Paulo não estava sendo nem modesto e muito menos “humilde”, mas que aquela fosse sua auto-percepção de fato?
Somente quem caminha o tempo todo se sabendo o principal dos pecadores – mesmos que seja o principal portador da Palavra entre os homens – é que vai ficar livre dessa doença chamada aqui de Síndrome de Quanto a Si Mesmo!
Quem crê como Paulo recebe o Evangelho todo dia, antes de tudo e todos, para si mesmo. Por isto, não prega aos outros nada além daquilo que serve para ele mesmo todos os dias.
Tentar sair disto é a receita mais certa para o empedramento e para a arrogância que já não enxerga nada que não seja o próprio disfarce de seu próprio umbigo, pois, de fato, nem o próprio umbigo enxerga.
Se eu pudesse convidaria a todos os cristãos para se rebatizarem sempre outra vez. Não como validação do batismo, mas como lembrança freqüente de que há um batismo para todos os dias chamados hoje.
Os mais conscientes são sempre os primeiros a curvarem-se ante a Graça de Deus!
E, para esses, não importa se o “colega” ao lado é o Silveirinha!
Caio
Escrito em 2003
Metanóia¹: Mudança Radical de Pensamento.
Metanoia – palavra grega que foi traduzida como “arrependimento” (assim como o verbo metanoeo), literalmente significa Mudança (meta) de Mente (nóia) era utilizada pelos gregos muito antes que a palavra fosse apropriada e popularizada pelos cristãos.
Para os gregos clássicos, metanóia significava mudar de pensamento, pensar diferente, reavaliar uma postura, mudar de idéia; implicava em mudança de mentalidade, de visão, de opinião, de propósito.