A Isabel cumpriu-se o tempo de dar à luz, e teve um filho.
Ouviram os seus vizinhos e parentes que o Senhor usara de grande misericórdia para com ela e participaram do seu regozijo.
Sucedeu que, no oitavo dia, foram circuncidar o menino e queriam dar-lhe o nome de seu pai, Zacarias.
De modo nenhum! Respondeu sua mãe. Pelo contrário, ele deve ser chamado João.
Disseram-lhe: Ninguém há na tua parentela que tenha este nome. E perguntaram, por acenos, ao pai do menino que nome queria que lhe dessem.
Então, pedindo ele uma tabuinha, escreveu: João é o seu nome. E todos se admiraram.
Imediatamente, a boca se lhe abriu, e, desimpedida a língua, falava louvando a Deus.
Sucedeu que todos os seus vizinhos ficaram possuídos de temor, e por toda a região montanhosa da Judéia foram divulgadas estas coisas.
Todos os que as ouviram guardavam-nas no coração, dizendo: Que virá a ser, pois, este menino?
E a mão do Senhor estava com ele.
Zacarias, seu pai, cheio do Espírito Santo, profetizou, dizendo:
Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo, e nos suscitou plena e poderosa salvação na casa de Davi, seu servo, como prometera, desde a antiguidade, por boca dos seus santos profetas, para nos libertar dos nossos inimigos e das mãos de todos os que nos odeiam; para usar de misericórdia com os nossos pais e lembrar-se da sua santa aliança e do juramento que fez a Abraão, o nosso pai, de conceder-nos que, livres das mãos de inimigos, o adorássemos sem temor, em santidade e justiça perante ele, todos os nossos dias. Tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo, porque precederás o Senhor, preparando-lhe os caminhos, para dar ao seu povo conhecimento da salvação, no redimi-lo dos seus pecados, graças à entranhável misericórdia de nosso Deus, pela qual nos visitará o sol nascente das alturas, para alumiar os que jazem nas trevas e na sombra da morte, e dirigir os nossos pés pelo caminho da paz.
O menino crescia e se fortalecia em espírito. E viveu nos desertos até ao dia em que havia de manifestar-se a Israel.
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Hoje eu estava no aeroporto de Brasília encostado no mesmo balcão da lanchonete da sala de espera no qual o Lukas se encostara há cerca de um ano e dois meses no caminho da floresta.
Viajei no tempo para a madrugada do dia da véspera dos cinqüenta anos de casamento de papai e mamãe, quando ficamos, toda a família, esperando por umas quatro horas uma conexão de Brasília para Manaus.
Lucas estava me ouvindo contar mais uma vez algumas coisas da vida dos dois santos que me geraram, de sua lutas, dores, bondade, misericórdia, sabedoria, e sinceridade.
Foi quando ele disse: “Eles provaram que podem se casar”. Isto porque, para ele, de fato aconteceria um casamento, não apenas uma Boda de Ouro.
O que ele estava dizendo é que o vencedor só se conhece no final, nunca antes. E muito especialmente no casamento.
Eu fiquei entupido de saudades…
Como que vi seus olhos castanho-escuro, fortes e agudos, me olhando enquanto ele dizia aquelas palavras de novo para mim, gritadas de minha nítida e concreta memória, e que me sacudiam não apenas pela saudade, mas pela verdade do que ele dissera naquela madrugada.
Então, fui comprar algo para beber. Estava na fila, cheio daquela madrugada, embora ainda não fosse 1 hora da tarde de hoje, quando um simpático homem me perguntou: “Reverendo Caio?” Disse que sim. “Nós sentimos e choramos a morte do Lukas. Mas sabemos que ele está infinitamente melhor”. Eu disse que sabia que sim, e que para mim isto não era esperança, era certeza.
Que carinho de Deus veio a mim através daquele discreto e doce anjo do Senhor!
Então me lembrei das palavras dos moradores de En-Karen quando João Batista nasceu. “Que virá a ser, pois, este menino?”
Me lembrei da alegria cheia de dor que senti na hora que ele nasceu.
Era como se ele já chegasse me conquistando e se despedindo…
Era como o gosto que passa pela boca, e deixa você sem apetite para mais nada, e logo depois apenas some…e deixa você com eterna saudade do sabor.
Lembrei que, olhando para ele, recém nascido, enquanto lhe cortavam o cordão umbilical, perguntei a pergunta do povo: “Que virá a ser, pois, este menino?”
Hoje eu sei. Aquele menino foi menino homem, pois na mesma medida em que era menino, não se vergava de tanta que era a sua macheza, o que por vezes me espantou.
Algumas vezes vi a intensidade de sua força e de sua animalidade selvagem. Outras vezes—milhares de vezes—ele era o cordeiro que dormia entre as minha pernas…até os quinze anos de idade.
Tinha uma espada de esgrima no definir. Possuía o dom de discernir idiotice. Olhava fundo nos olhos de quem olhava. Tinha medo de sentir as dores do amor, mas sabia que não conseguia não amar. Ou, então, podia de repente ficar tímido e escondido atrás de um olhar desconfiado.
Carregava em si sono e fome. Dormia muito. Mas quando acordado parecia desejar comer o tempo. E dançava muito bem, e alegrava todos os lugares. Ele era sempre uma espécie de mascote traquina.
Depois foi ficando reflexivo. Angustias de ser lhe apareceram na alma. E ele respirou como os leões esfaimados em busca de verdade e significado.
Quebrou-se no espírito. Dormiu na cama da sombra e da morte. Contemplou a morte, e não gostou dela.
Continuou sua viagem em busca de si mesmo com todo esforço. Por vezes dizia-se cansado. Então a vida o vencia e o desafiava, podendo ser algo que fosse uma banalidade, ou coisas mais profundas, ou o simples aniversário de alguém.
Mesmo nos dias de sua mais profunda depressão, nunca deixou de celebrar com alegria o seu aniversário. Também participou de todas as festas da família. Adorava uma data. Algumas vezes em silêncio, outras vezes eufórico, porém sempre celebrando as festas.
O mar de sua alma era normal, porém era um Pacifico, onde há de tudo, de calmarias às piores tempestades, e que agitavam nas regiões abissais todas as coisas, gerando por vezes morte de corais, mas sempre gerando mais vida. Sua profundidade de sentir era profunda. Ele mergulhou em busca de si mesmo em todos os lugares de seu oceano interior. E deixou o registro de todas as viagens em diários que nenhum de nós na família sabíamos que existiam. Ele escrevia na rua, na praia, nos bancos dos calçadões. Tudo só para ele mesmo. Hoje, para todos nós.
Hoje eu sei quem era aquele menino. Hoje eu posso dizer: “Ele provou que podia viver e ser homem”. Hoje eu sei quem gerei, e celebro sua vida com reverencia, e amor apaixonado e grato.
Cada um de meus filhos me permite ver-me neles refletido. Ciro carrega minhas alegrias intelectuais e muito de meu modo de ver as coisas deste mundo. Sinto-me gêmeo dele em muita coisa. Davi expressa de mim uma alegre sisudez, ao mesmo tempo em que ama esportes, e se faz respeitar com naturalidade. E ele mantém todas as suas verdadeiras amizades. Jú carrega com ela meus gostos e prazeres, além de minhas sensibilidades olfativas. Ela também é impetuosa como o pai, e também é chorona como ele. Para ela a vida é simples, embora ela seja muito forte.
Ora, o Lukas carregava minhas agonias, minha traquinice, meu desejo de saber o gosto das coisas da existência, e uma certeza total de que ninguém vive sem significado existencial assumido.
Houve algumas vezes em que ele discursou para mim enquanto conversávamos algum assunto, e que tanto me impressionaram pela agudeza do argumento e pela força da paixão, que cheguei a pensar que ele acabaria vivendo para anunciar e pregar a Palavra. Dias antes de partir ele me falou de Deus com tanta veemência que não resisti, e disse: “Meu filho, você ainda vai pregar muito”.
Hoje eu sei como ele pregou. Sou beneficiário de sua vida e de sua morte. Vivo ele me dilatou, e me provocou no amor e no entendimento. “Ido”, ele me desafia, me concita ao bom combate, à coragem de ser, ao desejo de ir até o fundo, e de não me satisfazer com nada que não seja vida. Sim, ele me chama: “Pai, leva tua paixão maior até o fim. Morre por ela. Vive para ela.”
Hoje eu vejo como ele não acreditaria no bem que sua existência trouxe a todos nós e tantos longe de nós.
Zacarias louvava a Deus pelo menino que seria um homem. Sabia que ele tinha uma missão. Sabia que ele era uma voz do deserto, duma terra onde quase ninguém caminha. Zacarias sabia que naquele menino havia promessa de Sol e de Visitação.
Pensar em meu filho me faz sempre pensar na total imponderabilidade da vida, e de como o que vale na vida é buscar o caminho da verdade, mesmo que seja gritando do deserto, da terra de poucos. Pensar nele renova minha paixão e meu chamado. Pensar nele me dá a alegria de um pai que soube do bem eterno de seu filho ainda na terra. Portanto, para mim, pensar nele é pensar na bondade do Senhor me visitando na terra dos viventes, pois vejo Seu amor pela minha casa, e a confirmação de Sua promessa feita desde sempre, mas renovada na aliança de Deus com meus pais, e na aliança de Deus comigo e com todos os meus.
O interessante é que João Batista morreu de modo banal. E sua cabeça ficou plantada na bandeja das futilidades.
Quem olha o modo da morte corre o risco de não ver sentido da vida que se foi…
No entanto, a banalidade da morte de meu filho, em mim, apenas aumentou a profundidade do significado profético que a existência dele teve para mim, e para toda a minha casa.
Por esta razão, uno-me a Zacarias, e digo com gratidão:
Tu, menino, és chamado profeta de tua casa, porque precedeste grande Graça, preparando caminhos de vida, para que muitos tenham conhecimento da salvação e do entendimento da redenção dos seus pecados, graças à entranhável misericórdia de nosso Deus, pela qual nos visitou o Sol nascente das alturas, e que nos iluminou nas regiões da sombra da morte, a fim de dirigir os nossos pés pelo caminho da paz.
Com toda gratidão de pai na terra,
Papai, ou, como muitas vezes, apenas “paiiiiiiiiiii!”