FUTEBOL: primitividade essencial para a alma humana!



Lembro-me do zunido de busca de captação da recepção de freqüência que o rádio grande e velho fazia, espremendo o jogo… Às vezes a recepção do radio fazia um “zommmngueee boiiionnnguee”… — e sempre alguém buscava melhorar a recepção da freqüência nessa hora; especialmente quando a bola chegava aos pés de Garrincha, na Copa de 58, quando eu era apenas um menino de 4 anos e pouco, em Manaus.

Entre 58 e 62 foi que comecei a jogar bola. Era impossível não jogar. Quando veio a Copa de 62 eu já estava viciado em bola, jogando o dia todo, como também já ia ao Estádio, também em Manaus, para ver qualquer jogo aos domingos, mas especialmente a fim de ver o Rio Negro jogar.

Em 64, quando em razão da “gloriosa revolução militar” nós mudamos para o Rio, mais precisamente para Copacabana — até hoje o refugio de quase todo amazonense fora de Manaus —, a bola já me tratava com amizade e eu a ela com extremo jeito e carinho.

Dei-me muito bem jogando contra os cariocas, tão logo aprendi a jogar na areia da praia. Foi logo nesse comecinho que meu tio Renato me levou, em companhia de meu pai, ao Maracanã, pela 1ª vez, a fim de ver meu time (uma seleção), o Botafogo de Garrincha, Didi, Nilton Santos e outros —, jogar contra o Santos (outra seleção) de Pelé, Coutinho, Pepe, Gilmar, etc. Para mim, como menino, ver aquele jogo, vindo de Manaus, da terra do Radio ainda, foi como ser posto diante de uma Epifania.

Nos anos seguintes eu haveria de jogar tanta bola, de manhã (futebol de salão), à tarde rachas na rua, bola na praça, jogo na praia, e nos finais de semana, no campo de grama profissional, que acabaria como candidato natural a jogador profissional.

À noite era bola na praia outra vez, agora com os refletores da Praia das Flechas, no Ingá, em Niterói, ligados e um grande público sempre assistindo.

E lá estava eu, apaixonado, indo ver até treino físico do Botafogo. E, para aumentar minha paixão, Gerson, o Canhotinha de Ouro do Botafogo e da Seleção, ainda morava na minha rua. Era tudo mágico!

Três vezes por semana lá ia eu, ao lado de Gerson e Roberto (o Furação), atravessando nas barcas, na direção do Rio, a fim de acompanha-los à General Severiano, em Botafogo, para ver o treino; e, sobretudo, ouvir os “papos” dos dois.

Aos fins de semana eu jogava no time de futebol de salão da escola, no time do Silvio Amigo, no estádio Caio Martins; e, sobretudo, no time que eu e alguns amigos havíamos formado, com a ajuda de meu pai e do pai de um amigo, o Cacau — nosso time era o Ingá Futebol Clube. Os fins de semana eram lotados de futebol para ver (no Maracanã) e para jogar, nos times aos quais eu pertencia.

Gerson chegou a me dar uma carta de apresentação para um certo Neca, que era a pessoa que cuidava dos aspirantes ao time profissional do Botafogo, em 1969. Naqueles dias, num dos jogos do Ingá, um goleiro dividiu uma bola comigo e me arrebentou o joelho esquerdo…

Lídio Toledo, tratamento, injeções, gesso, parada total…; depois fisioterapia, etc. Quando pude voltar a jogar, depois de quase um ano sem poder jogar nada pra valer, ao retornar a minha condição física, meu coração já havia murchado; e, estranhamente, o futebol, como sonho, se afastou de mim; embora minha habilidade com a bola me recomendasse sempre, para todos. A questão é que alguns hábitos danosos se acirraram em mim no processo, e, o pobre futebol dançou de minha prática-sonho-cotidiano.

No lugar do futebol entrou o Jiu-jitsu. E a paixão que antes eu tivera, por anos, em relação ao futebol, agora, convergira toda para a luta de chão. Acabei morando com os Gracie, tão aflito por aprender aquela luta letal eu me tornara.

Depois, entre os 15 e os 18, jogava bola apenas no time dos maconheiros, o Ponte Preta. No mais, via os jogos, sempre com uma sensação frustrada, pois, eu sabia que poderia estar lá; e, de fato, me dava raiva ver gente que não fazia outra coisa, ser ainda tão básica em relação à bola. Sim, depois da Copa de 70 minha alma se angustiava vendo jogo de futebol. Era como os antigos que não conseguiam achar belo o segundo Templo depois de terem visto o primeiro.

Voltei a me animar por uma seleção apenas em 1982, na geração Zico, Sócrates, Falcão, Junior, Eder, Leandro, etc. Mas Paulo Rossi nos mandou para casa em razão de nossa soberba; pois, de fato, até hoje, aquela foi uma das melhores seleções de futebol-futebol que o Brasil teve.

Nisto tudo, o que posso dizer é que deixei um botafoguense doente e leal seguindo os meus passos adolescentes, bem como criei um torcedor inadoecível do Brasil e do Botafogo: meu filho Davi — que sofre sem perder a esperança!

O futebol, entretanto, é um mistério. São 20 homens correndo atrás de uma bola e dois goleiros tentando fazer com que a redonda não entre pela linha da trave. No entanto, nada na Terra é mais forte do que futebol. Nada. A soma de todos os demais esportes, na Olimpíada, não é ainda para comparar com a Copa do Mundo de Futebol.

Talvez o futebol seja assim, tão universal no prazer que gera, por ser o único esporte absolutamente criativo, valendo qualquer parte do corpo, menos as mãos. No futebol tem-se o que há de mais primitivo entre os humanos como brincadeira; essa de dar aos pés uma finalidade de domínio e arte. Além disso, o futebol é o jogo de toda sorte de dribles e de manhas com o corpo. É o homem apanhando algo parecido com a Terra, a bola, e colocando-a sob seus pés, como se fosse o senhor dela. Nada é mais radical do que o futebol. Sim, porque põe o homem brincando de correr atrás da terra, dando a ele uma grande alegria no domínio da esfera. E não somente isto, mas o todo do corpo, à exceção das mãos, tem permissão para participar tão efetivamente quanto os pés.

Assim, com seus passes milimetricos, com suas jogadas de criação em frames de segundo, com a dinâmica de vai e vem que nenhum outro esporte cria, com a capacidade de driblar correndo, e, ainda assim, virar o jogo em direção diametralmente oposta — o futebol não tem concorrente; pois nenhum outro esporte é mais pleno e amplo; e nem mais pronto a exibir toda a ginga do corpo e toda a utilização dele; e isto com criatividade, individualidade e conjunto ao mesmo tempo.

Sim, o Futebol é a brincadeira humana mais antiga usando um objeto, e carrega consigo nossas lembranças mais primitivas; pois, ele (o futebol e sua bola), é a manifestação mais lúdica que a humanidade conseguiu preservar até hoje como entretenimento para toda a Terra.

Eu torcerei ardentemente pelo Brasil. Mas já não sofro quando não acontece de ser como eu sonhava. No meio de tudo isto, também torço pelo belo futebol mais do que pela vitória. Já fui campeão sem alegria em 94, quando aquele time ganhou sem apaixonar — exceto para os que nunca viram os magos jogando!

Também, como aspecto bem pessoal desta Copa, torço por Ronaldo, o Fenômeno. E faço isto porque admiro a postura sóbria do rapaz e porque dou grande valor a todo esforço que ele tem feito nos últimos anos, vencendo as dores, as quebradeiras, as contusões, as desistências rápidas de todos em relação a ele; e, apesar disto, dando-nos mais Copas; sempre tendo que, ao chegar, provar tudo outra vez. Assim, torço para que ele seja o maior artilheiro de todos os tempos em Copas do Mundo, o que acontecerá se ele marcar mais de três gols no mundial.

Estou escrevendo isto a fim de desejar uma Feliz Copa do Mundo para todos!

Boa torcida e boas emoções a todos!

Para mim é como assistir uma Copa em meio ao Apocalipse. Mas e daí? Brasileiro torce ainda que a guerra do Armagedon esteja rolando…


Nele, que é Aquele em Quem basta a cada dia o seu próprio mal, sem falar que em meio a tudo isto também há a alegria da Copa,


Caio