Charge de Chico Caruso: Caio, Betinho e Rubem César, em O Globo (nov. de 1995)
Um breve contexto histórico:
A década de 90 foi a década do nosso desbunde. O neoliberalismo chegou-nos antes mesmo do liberalismo. Tornávamos modernos. Resolvêramos esquecer tanto a ditadura civil-militar quanto o populismo de nossa versão de ‘welfare state” que a antecedera. Impeachmamos um presidente até.
Essa modernidade trouxe consigo um novo personagem social: o terceiro setor. A sociedade se assumiu. Inaugurou-se a era das iniciativas privadas de utilidade pública com origem na sociedade civil. A igreja evangélica também deu as caras. Nesse momento, o reverendo Caio Fábio foi, por excelência, quem deu rosto e maior visibilidade a essa igreja. Caio, gostando ou não, virou unanimidade! Soube transitar entre os dois mundos. Um dia tomou um susto com seu rosto estampado numa capa da Veja que o chamava de “o bom pastor”.
Nesse texto ele descreve sua trajetória de “santo da década” em que se tornara, ao lado de outros ‘santos’ seculares como Betinho e Rubem César, e de como foi promovido a pajé da tribo a ponto de extrapolar seus limites. Discorre ainda sobre os riscos morais, existenciais e espirituais da jornada de quem é alçado à condição de reserva moral de sua geração e as tramas ardis do sistema que os forja. Esse são os perigos que correm nossos santos”, seja um experiente Caio Fábio, seja uma inocente Malala.
Dilson Cunha
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A ÉTICA COMO TENTAÇÃO: BETINHO, LULA, E EU…
O ser que se considera ético, está sempre na beirada do abismo da corrupção; posto que sua certeza de retidão pessoal e de possuir boas causas para a vida, é, pela via da polarização no Inconsciente, sua maior tentação.
Caio
4/10/06
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Para a pessoa ética, o maior capital de tentação é a manutenção do poder de garantir que poderá seguir dizendo: “Eu sou ético!” E é por tal razão que todo crime do ser ético é feito de tentativas de manter a boa causa em curso.
Caio
4/10/06
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Este texto foi escrito em 2004, no “auge” do Lula e do PT, antes dos “escândalos” políticos!
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Era o ano de 1992, e, não apenas os evangélicos, mas boa parte do Brasil, havia me eleito um dos “Heróis da Ética”, um dos monges da Moral, uma das Reservas da Dignidade Nacional — conforme inúmeras vezes eu ouvi, li, e assisti as pessoas e todas as formas de mídia declararem publicamente.
Naquele tempo Betinho (hoje já esquecido, apenas uma década após a sua morte) era o Grande Papa da Ética Nacional. Virou Santo Ateu, Teólogo dos Incrédulos, o Portador de HIV que Esbanjava Esperança, o Fininho que pela sua própria fraqueza e despretensão, tanto era aceito, quanto era muito ouvido, pois, não parecia ameaçar ninguém, e, muito menos, desejar o lugar de ninguém; afinal, todos pensavam: “Vamos ajudar! O cara tá morrendo!”.
Lembro de quando Rubem César me convidou para encontrar Betinho. Acabou sendo o contrário: eles foram a um jantar na seda da Vinde. Era o inicio da década de 90.
Ora, eu já estava envolvido num monte de ações de natureza social, e de iniciativa leiga, apolítica (do ponto de vista partidário), e civil. Agora o Betinho vinha de São Paulo, depois de uma longa conversa com o Lula, com a missão de lançar a Campanha Contra a Fome e a Miséria. Lula teve a idéia, mas achou que se ele próprio encabeçasse o projeto, logo a ação seria vista como de inspiração partidária; e Lula não queria isso. Itamar Franco havia acabado de assumir a Presidência no lugar do “impichiado” Collor de Melo, e, estranhamente, logo se mostrou aberto ao diálogo com todos; especialmente com a chamada “sociedade civil” e com as ONGs.
Rubem César (Iser e Viva Rio) julgava que a Campanha teria uma grande chance de emplacar se os evangélicos comprassem a idéia. Naqueles dias tudo o que era “popular” era evangélico, posto que o fenômeno do crescimento daquele seguimento era o grande “fenômeno” da década, no Brasil, até então.
Esta, portanto, foi a razão de Betinho e eu termos nos encontrado a primeira vez: por recomendação de Lula, do Rubem César, e do Zuenir Ventura — com quem eu já feito amizade, em razão de seu livro “Cidade Partida”, o qual fazia viagens por dentro de alguns episódios que me envolviam como pastor de presos de Bangu I; evangelizador e batizador do Governador Nilo Batista; e líder “religioso” sem cheiro de religião; sobretudo, em razão de que eu, ao contrário da maioria dos pastores, segundo o Zuenir, estava sempre comprando causas aparentemente perdidas, numa época em que os pastores já eram bem conhecidos pelo seu interesse em dinheiro; já, então, um legado da IURD.
Dali para frente, sempre tive ótima relação com Betinho; e com ele, tive muitas conversas de natureza espiritual; e dele ouvi muitas confissões, as quais, me fizeram crer que seu ateísmo era uma grande defesa psicológica que um menino, mineiro havia construído a fim de se livrar dos traumas ligados a tentativas e assédios de padres abusivos em sua infância. Por essa razão, declarei a ele que seu ateísmo era psicológico, e que, portanto, eu não o levaria a sério, dando-me, por essa razão, o direito de tratá-lo como “um crente secreto e traumatizado”. Ele riu muito; e, daí pra frente, aceitou que eu o tratasse como quem lida com um irmão na fé.
Esta foi a razão pela qual ele deixou solicitado à sua esposa, que eu participasse do ofício de seu funeral, conforme veio a acontecer. Frei Beto e eu fizemos o funeral na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, quando, alguns anos depois, ele veio a falecer.
Betinho nunca negou fogo em relação a mim. Esteve presente em tudo o que pôde. Participou e endossou muitas coisas que eu fazia: Fábrica de Esperança, Casa da Paz, Atitude & Solidariedade, etc… E quando não pude ficar para receber o Presidente Fernando Henrique Cardoso (janeiro de 1994), na sua primeira viagem como presidente eleito, a qual privilegiou o Rio, e, na cidade, a Fábrica de Esperança como primeiro lugar a ser visitado —, pedi ao Betinho que fizesse as honras da casa, deixando eu um vídeo gravado e um grande Telão; enquanto fui com 500 pessoas cumprir o compromisso de levá-las a Terra Santa, o qual já estava agendado bem antes da marcação da visita presidencial.
Quando o Governador Marcello Alencar “aprontou” contra a Fábrica de Esperança (95), foi de Betinho o primeiro grito público a se fazer ouvir: “Ponho a mão no fogo pelo pastor. Isto foi armação…” E me mandou flores e uma cartinha amiga; e foi brigar na mídia.
E há muitas outras coisas e situações nas quais ele deixou clara sua confiança em mim como homem.
No meio disso tudo eu me vi na maior “saia justa” quando Betinho e Nilo Batista se indispuseram em razão do episódio envolvendo o recebimento da doação que Dona Terezinha, esposa do bicheiro Turcão, havia feito à ONG que Betinho fundara visando dar apoio a aidéticos. Ora, a tal doação teria acontecido na casa de Nilo, antes dele ser Vice-Governador de Brizola, e, depois, Governador em seu lugar.
Até aquele ponto Nilo e Betinho eram amigos. Mas as intrigas da mídia são diabólicas, e, de repente, por falta de coragem de Betinho em admitir de cara que havia recebido o dinheiro, e pronto — o que houve da parte dele foi hesitação; a qual, segundo Nilo, agravou o problema, e acabou por deixar Nilo, agora Governador, em situação dificílima. Em todas essas coisas, posteriormente, Nilo provou sua isenção; porém, as arranhaduras que aconteceram entre ele e Betinho não mais cicatrizaram (e eu estava entre os dois). Além disso, houve também o agravante relacionado ao fato de que tanto Zuenir escreveu uma crônica que ofendeu os sentimentos do Nilo (especialmente porque ambos também eram amigos), como também Rubem César postulou coisas de natureza considerada por Nilo como sendo “intervencionistas” (Operação Rio) — o que rompeu a amizade que até então houvera entre eles.
Assim, de súbito, eu era a única conexão entre Betinho, Rubem, Zuenir, o Viva Rio, os Marinho, e o ofendido e magoado amigo, ovelha e Governador. Vale dizer que João Roberto Marinho era membro do Viva Rio; e Nilo se tornara inimigo da Globo. Minha vida ficou complicada no meio daquele fogo cruzado. Tudo em nome da Ética de cada um.
Pois bem, muito antes disso tudo, esse mesmo Betinho estava ali, em 92, me convidando para ajudá-lo na Campanha Contra a Fome. Aceitei. Fomos a Brasília. O Itamar “comprou” a idéia, mesmo sabendo que Lula era o idealizador; e, assim, criou o Consea — Conselho de Segurança Alimentar da Presidência da Republica. O conselho era um grupo de celebridades. Tinha gente de todos os grupos e tipos de representação.
Logo comecei a receber um monte de missões de visitação para falar em todo tipo de eventos. Minha agenda já era um “inferno” de cheia; e, agora, eu ainda tinha que ficar naquela outra correria também. Na realidade, depois de umas vinte viagens, eu não agüentava mais falar no assunto “Fome e Miséria”; e, assim, organizei muitos grupos em todos os estados e capitais, e dei a cada um deles a missão de criarem tantos grupos quantos conseguissem.
O fato é que a Campanha “pegou”; e pegou como nunca nada antes havia “pegado” naquele nível de mobilização solidária no Brasil. E Betinho virou o santo daquele avivamento de boa vontade Ética.
Betinho estava em todas. Era capa de tudo. Era o santo de todos. Tinha gente que dizia que o mundo precisava de um Papa como o Betinho. Até para o Nobel da paz ele foi indicado. Tudo em nome da Ética.
Assim, já feito santo, surgiu a idéia de que ele encabeçasse cada vez mais profundamente a bandeira da Ética na Política, da qual ele já era a própria simbolização natural desde que Collor fora deposto.
Ora, naquele mesmo período, juntamente com ele, e por razões diversas, eu também era louvado dentro e fora da igreja por aquelas mesmas virtudes éticas.
Foi aí pelo meio disso tudo — quando eu estava todos os dias em jornais, revistas, rádios e televisões pelo Brasil afora, sendo consultado todos os dias pela mídia e por políticos, e a propósito de quase tudo — que uma amiga e irmã na fé, conhecida desde a minha adolescência, e que tinha toda liberdade comigo, veio ao meu escritório, e, do nada, me perguntou:
“Você não tem medo da Ética? Puxa, Caio! Ética é uma das mais fortes tentações! Você fica aí sendo a representação de uma coisa monstruosa. Eu sei que você não pediu e nem buscou. Mas é um perigo. Cuidado com a Ética. É muita sedução!”
E foi embora… Mas me deixou pensando…
Logicamente que só cheguei a conclusões definitivas acerca do tema depois do ano de 1998.
Ora, foi um ano depois disso que Betinho e Nilo foram vitimas da tal confusão da doação, e ambos foram terrivelmente afetados como figuras “éticas”; sendo que Betinho foi “repreendido” pela mídia, mas continuou tendo razoável espaço e respeito; mas já não era a mesma coisa. Nilo, porém, como era o Governador, sofreu “o diabo”.
Como disse, foi somente depois do Dilúvio de 98, que eu pude melhor compreender o significado de ser “reserva moral” do que quer que seja, e, também, acerca do significado da Ética como tentação.
Ora, sucintamente, é acerca dessas conclusões que quero aqui falar.
A Ética é a virtude dos santos seculares. É sua justiça-própria, é seu poder, é seu recurso supremo, é sua autoridade, é seu trono de Glória.
Assim, a Ética é também um outro nome que o “Querubim das Virtudes” pode usar a fim de esconder suas dissimulações. Isto porque a Ética, praticada como “virtude”, gera um dos mais monstruosos e dissimulados tipos de narcisismo.
Ora, todo narcisismo é hipócrita, pois, vive da imagem, da mascara, e, conseqüentemente, depende dela; pois, se ela for tirada por alguma razão, o que aparece é a face desvanecente de todo representante da Ética, como Paulo diz que aconteceu com Moisés, em II Coríntios três.