BENDITOS DELÍRIOS DE MEU PAI

 

 

 

 

 

 

 

Nas últimas 48 horas a situação de meu pai se tornou preocupante. Mas não sinto que deva descer a detalhes. Não estou nem com energia para isso. Hoje à noite, Graça a Deus, a situação se estabilizou; e, a pouco, 2 horas da manhã de Manaus (3 horas em Brasília), o enfermeiro da UTI me chamou no celular a fim de me dizer que achava que o quadro se revertia em nosso favor.

 

O fato é que a instabilidade na condição orgânica dele (de modo sistêmico) o havia deixado delirante; visto que em alguns pós-operatórios dele, o próprio efeito da anestesia o deixa delirantemente falante, coerente, ainda que apenas na imaginação dele; esta suspensa pelo efeito do anestésico geral. Mas agora, com tudo isto e ainda mais o quadro de natureza sistêmica que nele se instalara, não foi difícil para imaginar que o mesmo poderia acontecer; e até com mais intensidade..

 

Ou seja: que ele ficasse delirante em razão do quadro todo. Alias, esta é uma característica que dele herdei também.  

 

Entretanto, ele foi ficando calado, calado, calado… – até que fixou os olhos no nada, e, apenas pela via da insistência, respondia; e ainda monosilabicamente.

 

Desde cedo naquele dia eu pedira um neurologista para vê-lo. Meu medo e de minhas irmãs e mãezinha, era que ele tivesse tido alguma forma de comprometimento neurológico; o que, para ele, seria muito ruim; pois, todos nós sabemos que ela não nasceu para hibernar.

 

À tarde o neurologista esteve lá. Um rapaz agradável e bastante consciente do que fazia. Pediu exames, radiografias computadorizadas, e pediu para que algumas coisas fossam alteradas. Uma sintonia fina.

 

A seguir o médico ficou conversando comigo explicando as variáveis daquele estado catatônico e suas possíveis causas.

 

De súbito papai interrompeu, dizendo: “Não aceito. Nunca. Não aceito. Queima isso Jesus. Fogo. Fogo. Fogo santo. Queima isso Jesus!”.

  

Eu pensei: “Papai se deu conta da gravidade do quadro e, depois de perder vitalidade, arranjou na fé as energias espirituais e mentais a fim de reagir; ele está com raiva desse quadro; vai reagir como um leão; vai lutar. Começou a batalha”.

 

Antes de eu sair ele voltara ao estado meio catatônico no qual antes ele havia estado.

 

Voltei para casa e pus-me diante de Deus com muita paz, porém com muita intimidade no expressar o desejo do meu coração.

 

Era simplesmente horrível imaginar que ele pudesse partir sem vida, imerso na apatia; afinal, aquilo não parecia com ele nem morrendo…

 

Porém, aquela reação súbita, aquela irrupção de fé delirante, mas reativa e intensa, me havia alegrado o coração; mesmo em estado de intensidade delirante; pois, tanto ele quanto eu, bem cedo na nossa jornada de fé, em centenas de visitas a moribundos em hospitais, e até em relação a pessoas em estado de coma, havíamos discernido que o indivíduo ouve, sente, entende, e (em tal estado) sabe muito mais do que a medicina admite. Assim, mesmo àquele tempo (mais de 34 anos), sob risinhos de um médico ou outro, nós nunca deixamos de falar com os que estavam em coma; e, não raramente, víamos lágrimas rolarem pela face imóvel de pacientes considerados vegetativos. 

 

Hoje cedo [dia 11] o enfermeiro que nós pusemos lá a fim de monitorá-lo na UTI, me ligou dizendo que ele não estava bem, apesar do quadro de taxas clinicas não haver mudado me nada.

 

Corri para lá. UTI é coisa fechada. Mas eles têm sido generosos, e nos têm permitido entrar várias vezes ao dia para estar com ele.

 

Quando entrei no aquário de vidro da UTI ele estava falando acerca da presença de Jesus sobre ele. Era algo para ser ouvido como delírio. Entretanto, a lucidez do delírio era tão coerente e extraordinária em seu conteúdo de fé, que sendo ou não delírio meu coração se alegrou.

 

E ele [papai] exaltou a soberania de Deus.

 

“Jesus é belo. É perfeito. Lindo é o Senhor. Eu o vejo aqui, sobre mim. Vejo a luz meu filho. É consolo e força. Vou continuar. Vou continuar. Somente Ele diz a última palavra. Você pode ver as luzes Dele? Os homens pensam que sabem (falou olhando aos médicos e enfermeiros), mas o Senhor se ri de todos eles. O Senhor ri de todos os homens. Ele é absoluto. Ele cuida de mim. Ele é maravilhoso. Lindo. Como é lindo o meu Senhor” — disse ele em seqüência, de modo claro e bem pronunciado. Por vezes a intensidade era a de um profeta. Por vezes era o brado de um homem insano de fé. Mas havia força e autoridade nele. Impactava até como delírio.

 

E prosseguiu:

 

“Os jovens se cansam e se fatigam e os moços de exaustos caem, mas os que esperam no Senhor renovam as suas forças; correm e não se casam; caminham e não se fatigam. Não se fatigam… São como as águias! Renovam as forças.” Então, olhando agora para um médico e dois enfermeiros, disse: “Eles estão cansados. Mas eu estou forte. Fui renovado. Como a águia” — ele citou Isaias pegando em minhas mãos e fitando limpidamente os meus olhos.

 

Quando saí chamei um dos médicos e lhe disse que como o quadro permanecia estável, o acordar delirante dele me era extremamente feliz; pois era sinal de que não havia comprometimento neurológico. Ele concordou. Bendito delírio.

 

Durante a tarde o vimos outra vez. Mamãe, eu e Ana.

 

Mamãe perguntou se ele queria ir para casa; então ele começou a querer se levantar da cama a fim de ir…

 

Eu disse: “Agora não, paizinho!”.

 

“Claro! Eu quero ir pra casa.” E brincou: “É uma casa portuguesa com certeza…” — e riu pra mamãe. Delírio de bom humor.

 

Depois eu fiquei só com ele. Falamos de modo diferente, pois, ele apenas me contava o que cria, sem alusão a nada mais. Mas dizia: “Caio Fábio, meu filho…” e mandava ver. Ele pregava para todos; embora conferisse tudo comigo dizendo: “Entendeu meu filho?”.

 

“Essas coisas que eles falam sobre mim, não é nada disso. São poeirinhas para o Senhor. Ele queima e não fica nada, nadinha meu filho”. E acrescentou: “Coitados, não conhecem o poder de nosso Deus!”.

 

Eu continuava dentro do aquário com ele e alguns para-médicos. Então o médico da UTI veio me dar notícias acerca da melhora dele. Mas papai estava falando… Eu queria o laudo médico, mas não queria interromper aquele sinal de expressão tão alvissareira: papai empolgado discursando. Então o médico insistiu falando de como a diurese de papai havia melhorado, evidenciando isso, aquilo, e mais aquilo… Tudo muito bom.  

 

Papai parou e ouviu o que o médico dizia; mas ouviu só o final; e a fala médica trazia aquela boa insistência acerca do bem da diurese obtida.

 

Então papai interrompeu, olhando para mim, e disse: “Meu filho. Vá com ele. Mas independentemente da diurese, pense só no sangue, no sangue de Jesus. Os homens não entendem isso”.

 

Vi que o médico e os dois enfermeiros tremeram na base. Eu senti uma imensa Graça no delírio dele. Havia poder em tudo. Tudo era verdade.

 

O delírio era um delírio, mas no delírio havia verdade; assim, o delírio na verdade é ainda mais verdade que a realidade vivida em estado de delírio batizado de vida real.   

 

Ainda agora (depois de ter vindo de lá já tarde), o enfermeiro ligou para dizer que o quadro estava cedendo e que ele está falando tranqüilo, depois de ter dormido bem sossegado. É obvio que nós todos queremos tê-lo mais tempo entre nós, especialmente agora, quando a lucidez espiritual dele é cada dia mais iluminada. Até quando delira. Entretanto, Deus sabe que tudo o que queremos mesmo é que a vontade do Lindo de meu pai se faça; pois, nós estamos como aqueles que comem qualquer que seja o pão que das mãos do Pai nos venha.

 

Estamos bem e em paz; enquanto ele é ele [papai], até quando delira; pois, ele está cheio Dele; e a boca fala do que está cheio o coração; até quando delira.

 

[dia 12 bem cedo]

 

O enfermeiro acaba de falar comigo (dia dos pais) que papai disse a ele hoje cedo que Jesus já o havia curado, e que o resto é só pra nós; mas que ele já estava curado.

 

A seguir o médico me ligou me dizendo que a reação orgânica e das funções havia aumentado imensamente; e senti que ele estava alegre a animado.

 

Já o enfermeiro me disse que tinha ido a missa orar por ele; pois, afirmou: “Eu estou impressionado! Ele vai sair desse se Deus quiser!”.

 

E, assim, aquele homenzinho, gigante de fé, vai derramando sementes de amor, de fé e de graça aonde quer que esteja, e como quer que esteja; pois, nele, não há separação entre nada; posto que se delira, para o Senhor delira; e se mantém a lucidez atada ao real imediato, também com a consciência de Deus o faz; assim, quer delire quer diga coisas imediatas, ele o faz na verdade espiritual do Evangelho; e com a fé que nunca fica confundida. É pura Graça.

 

 

Nele, que é nossa alegria mesmo na tribulação,

 

 

 

Caio

 

12/08/07

Manaus

AM