O MISTÉRIO DA INIQUIDADE

 

 

 

A presença da iniqüidade no mundo é um mistério. De fato Paulo disse que se tratava justamente de algo misterioso e apenas revelado como mistério, tendo nós de tal realidade a sua confirmação como fato inescusável de nossa experiência no mundo, assim como ele tem sido inafastável da experiência da Civilização Humana.

 

Eu sei que o mal existe a partir de mim mesmo, e apenas a partir de mim mesmo me é possível verificá-lo como iniqüidade; seja em razão de identificá-la latente ou, por vezes, patente em mim; ou ainda por assisti-la todos os dias, seja isso por experimentá-la voltando-se contra mim (por ação de outros), seja por verificar o que “aquilo” que em mim identifico como iniqüidade pode realizar na dimensão coletiva total.

 

Assim, é estranhamente sadio que alguém só possa e saiba discernir o que é o mal a partir de si mesmo, pois, não sendo assim, surge um diabo entre os humanos.

 

O diabo o humano não vê mal algum em si; e, assim, ou torna-se um fariseu existencial, ou abisma-se na psicopatia educada, não sendo necessariamente fisicamente homicida (embora a existência nos mostre como o homicídio físico apenas aumenta), porém, mesmo assim, sempre o é nos guetos de morte do coração; não importando com que disfarce se oculte.  

 

No Gênesis não se diz de onde a Serpente veio. Parece até que é normal que ela sempre tenha estado ali, a ponto de já ter sido admirada antes como bela; mais bela e astuta do que todas as demais criaturas.

 

Nas Antigas Escrituras o mal é visto quase que exclusivamente vinculado ao homem e suas manifestações de injustiça. E quando Satanás é citado, quase sempre aparece como expressão de oposição, podendo ser do Satanás maiúsculo ou de satanases minúsculos.

 

As referencias de Isaías e Ezequiel a alguém que andava entre estrelas e passeava no Éden superior, ulterior e anterior ao Éden do Gênesis, o qual caminhava entre todas as pedras preciosas que se possa imaginar; e que era perfeito desde o dia em que fora criado, até que decidiu elevar-se — sem dúvida são referencias de natureza luciferiana, tanto espiritual quanto psicologicamente, porém, no contexto histórico de ambos os profetas mencionados, fazem referencia a figuras luciferianas existentes, fosse o rei de Babilônia ou o rei de Tiro.   

 

Foi apenas no período do Exílio em Babilônia que surgiram as noções mais abstratas de anjos sutis, com formas diferentes, por vezes alados, e muito mais abundantes na invisibilidade do que jamais antes na Escritura se fizera referencia.

 

Ora, tais noções existiam entre os Persas com os quais os Judeus conviveram no cativeiro em Babilônia, sendo assim difícil não imaginar a existência de um intercambio entre eles, a tal ponto que mais de quatro séculos depois foi da Pérsia que provavelmente vieram os magos que buscavam o salvador entre os Judeus. 

 

Na Pérsia dos dias do cativeiro dos Judeus existia uma noção de Satanás bem parecida com a que veio a predominar no restante das Escrituras. Também os anjos ou seres celestiais dos Persas tinham a delicadeza das descrições que posteriormente iremos encontrar em Zacarias, por exemplo.

 

Mas em nenhuma delas se tem qualquer tentativa de se estabelecer uma pré-história do mau ou da iniqüidade.

 

Nos evangelhos o mal é um fato, tanto no coração dos homens (“… vos sois maus…”) quanto no mundo que jaz no maligno.

 

Quando perguntado acerca do mal entre os homens (parábola do Joio e do Trigo), Jesus apenas disse: “Um inimigo fez isso!” Mas não explicou quem e qual a origem do inimigo, porém, nem por isso, deixando de afirmar que no mundo o joio era a semeadura do diabo.

 

Assim, Jesus cria uma imagem difícil de aceitar nos tempos de tamanha adoração ao mito psicológico cientifico.

 

Sim! Ele disse que o joio é o diabo-humano. E não ficou apenas aí. Quando confrontado pelos judeus (João 8), lhes disse que pelos seus desejos homicidas e pelas suas mentiras contra a verdade, eles eram não filhos de Abraão, como pretendiam ser, mas apenas e sobretudo filhos do diabo; pois, já que queriam ser filhos de uma criatura (Abraão), que soubessem que de uma criatura eram filhos, filhos do diabo; e que por suas pulsões e desejos eles próprios faziam a sua confissão de filiação ao diabo.

 

Para Jesus o mal era mau e pronto. E mais: para ele o mal do homem e o diabo mau não se diferenciavam. Assim, Judas pôde ser entrado e surtado pelo diabo, tornando-se diabo. Sim! Um diabo para o qual o único exorcismo é o arrependimento.

 

Desse modo Jesus não gasta tempo procurando diabo em lugar nenhum, ao contrario, o que ele diz é: “Vamo-nos daqui, pois aí vem o príncipe deste mundo, e eu nada tenho nele”.

 

De fato, nos evangelhos, os diabos são religiosos; não os publicanos e pecadores e nem tampouco os poderosos e pervertidos romanos.

 

Assim, no olhar de Jesus, o pior diabo é o que senta à mesa e toma a ceia antes de sair para trair a quem diz amar.

 

Quando demônios se manifestam diante de Jesus, Ele não os “entende”; não os explica; não os cogita; não os psicologiza; não os filosofa; não negocia com eles; não lhes faz nenhum rito; não lhes pronuncia palavras mágicas; e não faz nada além de apenas lhes dizer: “Espírito imundo, deixa esta pessoa!” — e pronto; tanto sai o demônio como fica a pessoa.

 

Também em Jesus não se vê as influencias do livro de Enoque com sua cosmo-gênese dos anjos e demônios. Nem tampouco Nele se vê qualquer referencia à hierarquia de tais seres, conforme já havia há trezentos anos, desde o retorno de Babilônia.

 

Em Jesus a água é como a água primal — pura e simples ao absoluto. Nele a água não é mineral, é pré-mineral em relação a tudo.

 

Digo isto porque Paulo recorre aos conceitos de principados e potestades conforme os últimos trezentos anos de desenvolvimento daquelas percepções, tanto certas (algumas delas), como exageradas (outras tantas).

 

O apóstolo, porém, faz como ensinou: examina todas as coisas e retém o que é bom em cada uma delas. O mesmo se dá com Pedro e Judas em relação ao livro de Enoque.

 

Entretanto, nem por causa disso, qualquer deles caiu na tentação de tentar tirar do mal o seu mistério. Aliás, é João, no Apocalipse, quem denuncia a seita cristã-gnóstica (esotérica) que pretendia saber as coisas profundas de Satanás.

 

Desse modo, não me sendo possível conhecer o mal senão a parir de mim mesmo, pois, sem minha auto-percepção do mal-em-mim todo mal seria apenas um direito de qualquer animal dotado de inteligência, eu digo: o mal existe, mas eu não sei sua origem para além de seu começo em mim.

 

No entanto, vejo que as Escrituras seguiram o mesmo padrão em relação a tratar com o tema do mal. Afinal, as supostas passagens luciferianas de Isaías e Ezequiel, ambas lidam com o mal a partir do homem, fosse o rei de Babilônia, fosse o rei de Tiro.

 

Desse modo não se remete ninguém para as fantasias de uma desobediência anterior a muitas formas de criação, quando um dos seres criados tornou-se o primeiro narcisista da criação, não vendo mais nada no estado de existente do que a sua cara bela e suas virtudes tornadas em lascívia de si por si mesmo.

 

Portanto, segundo as Escrituras e segundo Jesus, o melhor e único lugar para se discernir o diabo é em nós mesmos. Portanto, quem quer que deseje bem conhecer o mal deve dedicar-se ao estudo de suas próprias motivações.

 

O diabo existe fora do homem. Mas não interessa ao homem da verdade, pois, estudar o diabo fora de nós, é apenas um mecanismo de evasão da realidade, e, sobretudo, uma ação de fuga da verdade, posto que somente pela identificação do mal em nós é que se começa a experimentar a libertação.

 

Ora, tal processo é o exorcismo que a verdade realiza do diabo intrínseco que habita a iniqüidade humana.

 

Foi para o grupo ao qual Jesus havia dito que eram filhos do diabo e queriam cumprir-lhe os desejos (os quais eram desejos homicidas desde o principio), que, paradoxalmente, Jesus disse: “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” — mostrando assim que todo diabo humano pode virar filho de Deus pela consciência da verdade que produz arrependimento.

 

Esse diabo do qual falo escova os dentes com sua escova, se penteia com seu pente, veste Prada com você, e trabalha sentado em sua cadeira; e quando se pede dele um currículo, é o seu que ele apresenta. Ele até ouve seus filhos chamando-o de “pai” ou “mãe”; e, pasme: ele faz sexo sem amor com a sua mulher, e também com a sua amante. O mais fantástico é que ele ensina na classe onde você é mestre ou até pastor.

 

Esse bicho é a sua cara.

 

Quem, porém, o enxerga logo vê que ele, o diabo, não consegue ficar no ambiente da luz e da verdade no coração do homem.

 

Os diabos que saem quando se diz “sai em nome de Jesus” são os pequenos diabos; pois, a mais elevada manifestação do diabo é aquela que se veste de mim ou de você; e que abraça os que abraçamos; e beija quem a nós nos beija; e que cumpre o nosso papel social e psicológico, sem que ninguém o discirna; sem falar que se alguém diz a esse diabo “Sai”, está correndo o risco de ser preso por preconceito anti-civilizado. E isto sem nem mesmo cogitarmos o fato que quanto mais se diz “Sai” a tal diabo, mais ele cresce no homem em inextrincável simbiose.

 

Pense nisto!

 

 

 

Caio

 

10/08/07

Manaus

AM