Tive o privilégio de oficiar os 50 anos de casamento de meus pais no último dia 2 de maio, em Manaus.
No caminho para esse dia—ainda de madrugada no aeroporto de Brasília—ouvi meu filho Lukas comentar o seguinte sobre a importância daquele evento:
“É mais importante que o casamento. É o casamento que deu certo. Eles podem dizer que estão casados. Eles provaram que podem se casar”.
Fiquei pensando durante a viagem de Brasília para lá.
Tantas memórias me vieram ao coração que fiquei trasbordante.
A reflexão imediatamente me remeteu para dois textos bíblicos, ambos de Paulo:
“Combati o bom combate, completei a carreira e guardei a fé”—foi o primeiro que me veio à alma.
“Os casados sejam como se não fossem”—disse ele aos candidatos ao casamento em I Coríntios 7.
O primeiro faz uma leitura retrospectiva de toda uma existência.
O segundo manda existir sem se deixar cristalizar por estados, nem mesmo na conjugalidade, afinal, para Paulo, os dias eram maus e a alma precisava comprar sem possuir, se utilizar sem se deixar dominar e se alegrar como se nada estivesse acontecendo—nem de bom e nem de mal!
Juntei aquelas duas imagens e fiz uma Cronologia Existencial Invertida da vida de meus pais.
Década de 90: a década das dores maiores que o coração.
Foi quando choraram não por si mesmos, mas por aqueles que amam mais que a si mesmos.
Foram perdas, sustos, angustias secretas e dores públicas para as quais eles não tinham explicação a dar.
Foi tempo de silêncio, resignação, re-signação, re-significação, e de procurar o departamento de “achados e perdidos da vida” para, ao final, poder exclamar: “Salvaram-se todos!”.
Década de 80: a década das grandes satisfações.
Todos os filhos encaminhados.
Perfis humanos definidos na família.
Trabalho, e muito, realizado.
Prazeres conquistados no coração.
Tudo isto não sem dores, doenças e achaques—e muitas limitações físicas!
Década de 70: a década da loucura santa.
Eram pulsões incontroláveis.
O mundo tinha que ser salvo de uma vez.
Anjos e demônios presentes no café da manhã, no almoço, no jantar e até no meio da madrugada.
Amigos aos montes e também alguns aproveitadores de boa qualidade no surrupiar.
Muita fraternidade, mas também excessiva invasividade.
Luto—meu irmão morreu—e novos rebentos: nasceram Ciro, Davi (meus filhos daquela década) e Anelise, Lilian e Jonatas (filhos de minha irmã Suely).
Década de 60: a década das metamorfoses.
O coração gelou—digo: o de papai.
A alma se escondeu: refiro-me a de minha mãe.
A voz de Deus contou segredos—a nenhum dos dois, mas a minha vó, mãe velhinha, que ouviu as palavras: “Pede um filho”.
Então o calor dos trópicos celestiais desgelou o inverno de um polo que tinha de vivido e conhecido—do contrário o resultado não seria hoje tão belo.
O impossível chegou, se instalou, não pediu permissão a ninguém e nem se explicou.
Década de 50: a década dos sonhos simples.
Dois amigos—Zé Reis e Raquel—iriam se casar.
Convidaram dois desconhecidos entre si—papai e mamãe—e desse casamento nasceu uma outra união.
Era uma professorinha do interior do Estado entrando para uma família de mestres.
De outra feita, um engenheiro de coração tinha que passar a advogar por profissão.
E foram morar numa pequena casa nos fundos de um casarão—eram pequenas as ambições, mas dali surgiram grandes negócios.
Nasceram-lhes filhos muito diferentes.
E para os filhos eles eram os pais que não se alteravam, pois cresciam junto com as crianças, e não nos impediram de crescer com os adultos e muito menos com a floresta e os animais.
Naquele tempo a grande era virtude era apenas ser digno e muito humano.
Bem, depois dessa Cronologia voltei para hoje.
E hoje?
Pensei outra vez nos dois textos de Paulo.
Realizei o obvio: termina sempre onde começa e começa sempre onde termina.
Somente os casados que foram casados como se não fossem é que combatem o bom combate, completam a carreira e guardam o amor.
Mas e eles?
Ora, quem já tinha vivido a década de 80 com tantas realizações, como poderia imaginar que a seguinte seria um interminável pesadelo?
Mas e eles?
Bem, eles nunca estiveram tão bem, nem tão bonitos, nem tão libertos e muito menos tão abertos, sadios e leves!
Para mim restava a perplexidade do “mestre sala” de Caná da Galieia:
“Todos costumam por primeiro o bom vinho, e quando já beberam fartamente, servem o inferior. Tu, porém, guardaste o bom vinho até agora”.
É somente depois de tudo que se pode dizer que se casou e com quem se casou.
É somente após a vida que se pode enfim celebra-la toda.
À minha mãe sobrava dizer:
“Eu te amei quando te vi
só não sabia que seria como foi:
tantas árvores frondosas pra cuidar,
tantos rios bravos pra acalmar,
tantos filhos diferentes pra criar, sofrer e amar!
Eu te amei quando te vi,
quando de perto te senti,
quando vitorioso me saudaste,
quando quebrado te rejuntaste ante meus aturdidos olhos.
Eu te amei quando te ouvi,
quando me embalaste com a solene poesia de tuas gravidades,
e eu te aliviei de pesos que eu não podia para mim,
mas me fiz forte para te ajudar a poderes para nós.
Assim, meu velho, depois de tudo hoje te digo:
A melhor profecia é a que se cumpriu,
e o melhor a mor é o que permaneceu.”
Agora sim, como disse o Lukas:
“Eles provaram que podem se casar”.
Caio Fábio