A UNIDADE DO SER NO CASAMENTO DA DOR COM A ALEGRIA
Outro dia Adriana e eu estávamos vendo um filme chamado “Memórias do Passado”;o qual trata do fenômeno da memória reprimida; seja gerando amnésia, neurose aguda, ou processos dissociativos entre a pessoa e seu trauma; ou mesmo, fazendo aquela memória inexistir até que o indivíduo abrace aquela dor.
O problema é que a memória reprimida mata pedaços inteiros da existência e cria um eu em fuga…
Durante o filme — o qual remete o “traumatizado” para o lugar de seu trauma, no qual ele inicia a recuperação de sua memória acerca da garotinha que ele um dia amara, e que morrera afogada enquanto ambos tinham um singelo momento de amor e muito carinho — surge, de suas memórias, a figura extraordinária do pai da garotinha, em pequenas e profundas assertivas que o doído, porém feliz homem, fez ao garoto enquanto a sua filha ainda vivia; e, também, após ela ter morrido.
Numa das falas do “pai da menina” que morrera faz, ele diz ao menino amargurado pela perda e pela culpa (a garota morrera afogada enquanto eles flutuavam vendo as estrelas), o seguinte:
“Quando eu sentia dor na infância, minha avó costuma dizer que ‘eram os meus ossos crescendo’; pois, crescer dói. E é assim com a alma.”
Sim! De fato a alma não cresce sem dor, e não se mantém sem alegria.
Nascer dói. Mas são os sorrisos entre mãe e filho o que dá à criança o seu sustento existencial. Passar cada fase inter-psiquica, dói; mas é a alegria de cada nova estação alcançada o que, em alegria emancipativa, faz a pessoa manter-se no crescimento sem adoecer.
E assim vai até a última passagem, quando também dói, mas a alegria da morada eterna e das memórias dos legados deixados, sustenta o espírito-alma na travessia.
De fato, dor sem alegria mata e rouba as memórias que integram a existência humana. Pois quando, em tal caso, a pessoa, pela dor, não se torna a própria tristeza, deixando de ser ela própria, e, assim, abraçando um eu-de-dor — ela pode gerar o auto-esquecimento inconsciente ou mesmo deliberado (o último caso é o pior deles), o qual, sendo fruto da dor reprimida, produz também um outro eu: vazio, contido, silencioso e desalegrado.
O livro do Eclesiastes nos diz que a sabedoria habita a casa do luto, e não da alegria. Porém, também nos diz para nos alegrarmos todos os dias possíveis, pois muitos serão e são dos dias de trevas e dor.
Ora, assim, o Eclesiastes está dizendo que a alma não cresce sem dor, e não se mantém sem alegria.
Jesus diz que no mundo se tem aflições, e completa: “Mas tende bom ânimo, pois eu venci o mundo”. E promete que em meio às muitas dores receberíamos uma alegria que o mundo não conhece, não pode dar, mas que também não pode de nós tomar.
E aqui reside mais um paradoxo: Jesus, a alegria dos homens que o amam, é também o Varão de dores e que sabe o que padecer!
Nos evangelhos somos apresentados ao Jesus que sofre a dor do mundo enquanto se alegra na companhia dos homens — especialmente daqueles que sentem as dores de sua própria inadequação à vida.
O pastor da ovelhinha perdida sente dor, mas quando a acha, abraça-a com alegria. A mulher que perdeu a dracma, sente dores e inquietações, mas, quando a acha, dá uma festa para as amigas. O pai do jovem que abandonou o lar, sente dores, e chora a morte de um filho morto em vida, mas, uma vez que o vê chegando, dá a maior festa que pode fazer no improviso da alegria.
Assim é Jesus no Evangelho!
Assim é o Pai de Jesus!
E assim devem ser os filhos do Pai e irmãos de Jesus!
Meu pai e minha mãe são algumas das pessoas de dores mais intensas que já conheci, e, ao mesmo tempo, provavelmente os mais alegres que conheço!
Perderam e experimentaram todos os cadinhos de dor, mas fizeram sopas de felicidade dos pedaços de carne de alma que lhes foram arrancados pela vida.
Por isso, tornaram-se tão sadios como são! E tão sãos como são.
Paulo é quem nos oferece a formula do paradoxo da alma que abraça a dor e vive de alegria:
“… em tudo recomendando-nos a nós mesmos como ministros de Deus: na muita paciência, nas aflições, nas privações, nas angústias, nos açoites, nas prisões, nos tumultos, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns, na pureza, no saber, na longanimidade, na bondade, no Espírito Santo, no amor não fingido, na palavra da verdade, no poder de Deus, pelas armas da justiça, quer ofensivas, quer defensivas; por honra e por desonra, por infâmia e por boa fama, como enganadores e sendo verdadeiros; como desconhecidos e, entretanto, bem conhecidos; como se estivéssemos morrendo e, contudo, eis que vivemos; como castigados, porém não mortos; entristecidos, mas sempre alegres; pobres, mas enriquecendo a muitos; nada tendo, mas possuindo tudo.”
Desse modo, aprende-se, para o bem do ser e saúde da alma, que a alma não cresce sem dor, e não se mantém sem alegria.
Esta é a formula da vida abundante, a qual, nunca se aliena e nem foge de dor alguma, antes a encara sem carranca, pois, carrega em si um significado mais profundo do que a dor, o qual, faz a pessoa transformar qualquer pedaço de si mesmo num guisado existencial de alegria.
Quem assim entende é feliz. Quem isso não compreende vive em fuga de fantasmas ou na companhia deles! — mesmo que em suposto estado de esquecimento!
É na presença dos inimigos e das adversidades que se bebe do cálice que transborda em alegria!
Nele, em Quem o paradoxo dor versus alegria tem sua síntese de toda saúde e plenitude,
Caio
25/02/07
Lago Norte
Brasília