ANGUSTIAS E MAIS ANGUSTIAS….NASCI VELHO!
—–Original Message—– From: ANGUSTIAS E MAIS ANGUSTIAS…. Sent: segunda-feira, 15 de março de 2004 18:20 To: [email protected] Subject: QUERO SAMBAR O “MEU SAMBA” Mensagem: Reverendo Caio, É um motivo de grande alegria o escrever para alguém com a sua perspicácia e acurácia investigativa. Eu costumo chamá-lo de “escafandrista de almas”. Ou seja, observo a sua capacidade de mergulhar nas regiões lodosas e escuras da psique humana e diagnosticar os seus segredos. Graças a Deus que ainda se encontram homens com a sua capacidade compreensiva, um instrumento de Deus para ventilar almas que se encontram num verão de tentações e amarguras. Tenho acompanhado a sua história de vida e percebo que num dado momento da sua existência houve o desejo de meter uma bala na cabeça. A crise e a falta de sentido para a vida o enfeitiçou e fez espirrar na sua alma a ausência de vontade de continuar a existir-no-tempo. Gosto de ler os seus livros. E já li a sua auto-biografia duas vezes nos últimos cinco meses. No dia primeiro de fevereiro o vi pregar em Pernambuco e fiquei tremendamente feliz. Acompanho o seu site com regularidade e tenho crescido muito. Impressiona-me ver a poeira das taras, inanições e tendências que são sufocadas pelas convenções, pelas máscaras, pela camuflagem do tentar ser quem não se é por já se ser quem se é. Converti-me no final de 1999 numa Igreja Presbiteriana e sempre nutri um profundo desejo de ser um agente do Reino de Deus. Ser alguém que não faz o que a institucionalidade faz, de sambar como todo mundo “samba”; queria viver e pregar os princípios imutáveis e inegociáveis do Evangelho. Antes da minha conversão eu vivia mergulhado num aquário de angústias. Sempre tive propensões para o isolamento. Sempre tive inclinações meditativas por causa da minha personalidade propensa à melancolia. A conversão restaurou completamente a minha alegria. Mas ultimamente eu tenho sentido as chuchadas da angústia. Sou estudante num dos seminários Presbiterianos. Outro dia eu lia algumas páginas de “O Diário de um Sedutor”, de Kierkegaard, e uma frase me instigou: “Desde que nasci eu sempre fui velho”. É isto o que sinto. Tenho 26 anos e me sinto senilizado, desanimado, envelhecido, com a alma enrugada, carcomido pela dor de uma solidão que nem mesmo eu consigo definir. Eu sinto frio nos trópicos do meu mundo. Nietzsche dizia que “é preciso ter um caos dentro de si para conceber uma estrela bailarina”. Mas, acima de tudo, é preciso ter coragem para conceber esta estrela. É precisa aceitar o seu caos interior para se chegar a esta concepção. Todavia, eu estou congelado pela frieza do meu mundo interior. Sou elogiado por aquilo que sou. As pessoas elogiam-me por aquilo que tenho feito na minha comunidade, pela minha inteligência, pela capacidade que me foi dada por Deus para pregar a Palavra dEle; mas somente eu sei da existência dos vermes que estão dentro de mim a roer os tecidos da minha potência humana. Às vezes, penso em morrer, em deixar esta existência e mergulhar no liquido amniótico da eternidade. Tenho uma namorada linda, mas sinto que a estou enganando – embora goste muito dela e tenha sonhos para com ela – por tudo aquilo que sou. Tenho sonhos e pretensões ministeriais, mas em outros minutos tudo isso se espiraliza como fumaça e se perde. Estou lhe escrevendo para contar este problema, porque outra pessoa diria que tenho meia dúzia de encostos ou uma legião de potestades. Quero apenas compreensão. Torço pelo seu ministério e pela concretização dos seus sonhos. Tenho orado pela sua vida. Que o Senhor Jesus continue a atravessá-lo com a Sua graça. Responda-me se possível. Do seu irmão em Cristo, um abraço. ___________________________________________________________ Resposta: Meu amado amigo, Obrigado pelo carinho e confiança no abrir o coração. Primeiramente devo dizer que dado ao caráter profundamente subjetivo de sua “situação existencial”, fica difícil qualquer opinião mais especifica, e que possa ser, ao mesmo tempo, responsável. Algumas coisas me chamaram a atenção, e devolvo-as para a sua própria reflexão. 1. Você disse: “Impressiona-me ver a poeira das taras, inanições e tendências que são sufocadas pelas convenções, pelas máscaras, pela camuflagem do tentar ser quem não se é por já se ser quem se é.” Ora, o ser mais angustiado é aquele que sabe quem é, mas não assume o seu próprio ser…em razão de todas as “…convenções, máscaras e camuflagens”. Você descreveu um “antes” cheio de angustias—“Antes da minha conversão eu vivia mergulhado num aquário de angústias. Sempre tive propensões para o isolamento. Sempre tive inclinações meditativas por causa da minha personalidade propensa à melancolia.” Então, houve um tempo no qual você se viu restaurado completamente na sua alegria (que você chamou de “minha alegria”). Ou seja: algo que era seu, apareceu, pois antes estava sufocado. Sua conclusão sobre o hoje, no entanto, remete você para outros sentimentos… “ultimamente eu tenho sentido as chuchadas da angústia.” A sua angustia de hoje parece encontrar em sua perda de romance pela instituição o álibi para o atual retrocesso existencial, conforme a declaração que você fez: “…sempre nutri um profundo desejo de ser um agente do Reino de Deus. Ser alguém que não faz o que a institucionalidade faz, de sambar como todo mundo “samba”, de viver e pregar os princípios imutáveis e inegociáveis do Evangelho.” Para mim você está vivendo um tempo semelhante àquele que alguém que um dia se apaixonou e amou, experimenta à medida em que a “relação amadurece”, e as fantasias e projeções vão dando lugar à esmagadora realidade de que o real não pode ser evitado por muito tempo, sob pena de que a alma se desespere pela experiência da ilusão que não quer ceder e simplesmente se diluir. Portanto, eu ousaria dizer que o choque com a realidade da fé como “religião”, está dissolvendo aquilo que você chamou de “minha alegria”, e o está devolvendo à sua melancolia, que tem a ver com verdades mais profundas de seu ser. 2. É muito provável que as angustia atuais tenham algo a ver com esse seu “eu” não assumido. O único caminho possível de bem-aventurança passa pelo ser—veja que os bem-aventurados não são os que têm…; ou os que são percebidos como…; mas apenas os que são—Mt 5:1-10. Me parece que você vive um processo mais profundo do que você imagina acerca de seu próprio “eu”. Essa angustia deve se derivar de seus “papéis performáticos”, que apesar de “bons” podem não estar fazendo bem a você. Francamente preocupou-me que seus talentos e qualificações o tenham conduzido ao seminário teológico, e não uma esmagadora convicção de chamado para tal. Não me seria em nada surpreendente se você descobrisse que essa auto-imposição de utilizar sua inteligência à serviço do reino de Deus esteja fazendo muito mal a você, especialmente porque você foi posto numa fôrma, e que é apresentada como o “samba oficial” de todo servo de Deus. Sua vontade expressa é a de “ não sambar como todo mundo samba”. A pergunta que eu me faria, seria inicialmente a seguinte: O que, para mim, significa não sambar como todo mundo samba? Que samba é esse? Achei interessante você usar essa linguagem “rítmica” a fim de expressar seus anseios: …o samba. Parece claro que você está com o conflito do Zeca Pagodinho: gravou para a Schin, enquanto bebe e gosta de Brahma. Cada um tem que descobrir qual é o seu próprio samba, e não dá para dizer que a gente gosta daquilo que a gente não gosta. Tal negação acaba por negar a própria alma. Portanto, me responda: qual é o seu samba? 3. Seja o que for, isto está gerando um conflito insuportável em você. Leia as suas palavras, e a força delas: “…eu estou congelado pela frieza do meu mundo interior. Sou elogiado por aquilo que sou. As pessoas elogiam-me por aquilo que tenho feito na minha comunidade, pela minha inteligência, pela capacidade que me foi dada por Deus para pregar a Palavra dEle, mas somente eu sei da existência dos vermes que estão dentro de mim a roer os tecidos da minha potência humana.” Ora, aqui você diz que as pessoas o elogiam por aquilo que você é, ao mesmo tempo em que você associa esse seu-ser-para-os-outros apenas com o seu “fazer ministerial”, bem como associa a sua inteligência e capacidade de comunicar a Palavra a outros ao mesmo “personagem”. Todavia, enquanto isto, você geme, pois, de fato, o seu eu-real ainda não teve a chance de se mostrar. Ele precisaria, como você disse ao final da carta, “ser compreendido”. Então, você fala da dissociação entre o “eu”, de um lado, e o seu “sósia”, exposto aos sentidos dos outros. “…somente eu sei da existência dos vermes que estão dentro de mim a roer os tecidos da minha potência humana.”—você disse com toda veemência e verdade. 4. O que de fato se estabelece é um conflito de eus. O seu eu verdadeiro anda inquieto com as fantasias que rodeiam o seu “sósia”. É insuportável quando este confronto se estabelece. 5. Você também fez referencia à corrosão de sua “potencia humana”. Além disso, você citou dois exemplos históricos de pessoas que viveram grandes angustias, e que as tiveram profundamente relacionadas à questão da afetividade adoecida e frustrada: Kierkegaard e Nietzsche. Ora, é impossível entender a ambos os pensadores apenas pelo que disseram. Não houve tanta objetividade assim em seus escritos. De fato, suas percepções filosóficas estavam profunda e atavicamente ligadas à frustrações amorosas. Portanto, foram filosofias de expressão de pura “emoção”, muito mais do que de qualquer “razão”. Ambos os autores—apesar de meu parentesco afetivo com Kierkegaard—precisam ser entendidos mais psicologicamente do que “filosoficamente”, pois suas produções carregaram doses intensas de afetividade dolorida e magoada. O “caos” de ambos foi aprofundado por amores inviáveis ou impossíveis—você sabe as histórias deles. 6. Ora, isto posto, quero também que você medite na seguinte declaração: “Tenho uma namorada linda, mas sinto que a estou enganando – embora goste muito dela e tenha sonhos para com ela – por tudo aquilo que sou”. Outra vez temos a angustia do eu-real pela existência de um sósia, e que tem cara de genuíno, mas que ainda não corresponde ao “eu” que você sabe que é. E não me surpreenderia em nada se sua identificação com Kierkegaard e Nietzsche for de caráter profundamente solidário, não apenas na dor, mas nas causas afetivas da dor. No seu caso, não lhe falta uma “mulher linda”. Falta-lhe a coragem para deixar que ela veja quem você é…ou, conforme suas palavras ainda mais fortes, “aquilo que sou”. O fato de você chamar “quem” pela designação de “aquilo” não me permite passar “batido”. Tenho que parar aqui um pouco. Preciso perguntar a você não quem é você (pois isto traria seu eu à luz, e este, para mim, não é o problema agora), mas sim o que é “aquilo” que os outros chamam de “eu” para você, mas que ofende a você o tempo todo, pois você sabe que “aquilo” não corresponde a “quem”…você é. Enquanto “aquilo”—que tem cara boa para todos—estiver impedindo você de mostrar a cara, e revelar o eu-real, sua angustia só aumentará. E, pessoalmente, acredito que os conflitos com a falta de ritmo nos “sambas” que você é forçado a sambar sem querer—digo: conforme as instituições—, não é o problema, mas apenas a “cortina de fumaça”. 7. Pedindo a Deus para lhe útil, sinceramente eu lhe diria que a presente angustia é a remetência de sua alma à uma angustia mais antiga, e que foi aliviada pela alegria da conversão—dando a você um encontro com aquilo que você chamou de “minha alegria”—, mas que está ainda longe de ter sido tratada. Minha impressão é que sua angustia, antes de ser filosófica e existencial, é de natureza psicológica, e tem tudo a ver com sua identidade sexual e afetiva, e com a luta que existe em estado latente dentro de você. Posso estar errado, mas gostaria que você considerasse essa possibilidade. 8. Você se sente velho. Eu penso que você sente é a preguiça de ter que nascer e se encarar…se olhar de frente. Aliás, sua alusão a mergulhar no “liquido amniótico da eternidade” bem expressa essa fixação no útero como lugar de proteção ou fuga. A impressão que me dá é que você se sente velho de não ter ainda nascido. Viver e assumir quem se é, é algo penoso e doloroso, mas é o único caminho para a vida. Seu sofrimento é o de alguém que precisa nascer, mas tem medo de deixar o útero de seu próprio engano. Ponha a cara para fora. Sua velhice existencial é fruto de que você está envelhecendo no útero…Sair daí implica em assumir todas as suas identidades. E isso dói! 9. Por último, gostaria de estimular você a não se impor ministério algum se isso estiver lhe fazendo mal. Nada há pior do que dançar o samba dos outros, por mais belo que seja. Você viveu um amor de verão com a religião, mas agora terá que aprender o amor eterno, descansando na Graça de Jesus “aquilo” que está em você, e que é infinitamente menor do que quem você é, mas que como é algo negado, cresce para se transformar num “eu-sósia”, e que tem o poder de caotizar a sua existência enquanto você não admitir e descansar. Não há libertação possível longe da verdade. Concluindo, quero estimular você a não chamar o ministério para dentro desse cânion de angustias. As coisas apenas ficariam piores. E, sinceramente, não creio que sua namorada linda ficaria escandalizada se soubesse que você sente profundas angustias—Jeremias e quase todos os profetas viveram em profunda intimidade com angustias—, mas, talvez, com a “causa” dessas angustias. Me parece que é isto que você teme. Ou seja: maior que sua angustia é o seu julgamento acerca da “causa” dela, e de como os outros o veriam depois de tal revelação. Sua angustia só irá dar lugar à paz quando você descansar tudo…a causa…ou as causas…no amor de Deus. Na Graça de Deus todas as angustias podem ter cura, pois na Graça de Deus nenhuma angustia tem, em-si, um juízo moral. Na Graça de Deus eu estou livre até para me angustiar. Talvez eu esteja livre sobretudo para me angustiar. Afinal, não há condenação para quem está em Cristo Jesus, mesmo que esteja angustiado, e mesmo que a causa da angustia possa ser moralmente interpretada como algo depreciativo para os demais. O que importa é você. Pense em tudo o que lhe falei e, se desejar, me escreva sem temor, e abra o coração. Nele, que conhece as nossas almas e não nos despreza, Caio