ARTHUR VIRGÍLIO NETO, OS GRACIE E EU



A tradição de briga de rua do Amazonas sempre foi a do embolado, da gravata, do estrangulamento: coisa da terra da sucuri.

Meu tio Carlos Fábio, médico, já falecido, enquanto estudava medicina em Salvador, teve aulas de defesa pessoal, que era uma mistura de coisas básicas do judô, do jiu-jitsu e de pequenas “saídas em pé”, contra-atacando quando de uma facada, uma paulada, um chute, ou coisa do gênero.

Naquele tempo os Gracie já estavam começando a desafiar qualquer um no Rio que pudesse lutar com eles e vencer; não importando o tamanho, o peso, a arte marcial, ou o que quer que fosse. Era o Jiu-Jitsu virando Vale Tudo.

Papai e tio Carlos gostavam de ensinar a mim, e aos meus primos, tudo o que o tio Carlos sabia de defesa pessoal. Assim, aos sábados, tínhamos sempre nossas sessões de vale-quase-tudo. Não valia soco, mas valia dar com a mão aberta. Não valia chute baixo, mas valia a banda e a pernada. Não valia puxar o cabelo, nem dedo no olho, nem apertão no saco. Mas cada um que se virasse para não bater. Obviamente eles faziam intervenções quando julgavam necessário ou justo. Não podia haver animosidade depois também. E eles nunca botavam primo e irmão lutando um contra outro. Por isso, outros meninos eram levados com a gente; e o pau cantava era com eles—amigos da vizinhança, ou os filhos dos caseiros, ou empregados adolescentes que por lá havia.

Quando vim para o Rio, aos 10 anos, meu tio Renato falava no Jiu-jitsu dos Gracie. E demonstrava conhece-los. Ouvi as histórias e fiquei encantado. Mas foi só isso.

No Rio eu dei bons socos e gravatas nos meninos da Sá Ferreira e do Grupo Escolar São Tomás de Aquino, no Leme—quase sempre porque eles faziam pouco de meus modos e sotaques amazônicos.

A adolescência em Niterói teve algumas brigas na escola e na rua. Nada, porém, muito grave. Trocas de socos, gravata, e, logo a seguir, a intervenção “da turma do deixa disso”.

Voltei para o Amazonas aos 15 já meio ‘acariocado’. Senti que a moçada de lá falava menos e fazia mais; e que o que no Rio era papo, lá era fato.

Mas era o auge do movimento hippie, e minha sensibilidade me havia já há muito me empurrado ideologicamente para o lado deles. Assim, evitei brigas e me dediquei “à paz e ao amor”, de preferência na companhia feminina; e que no Amazonas é tão farta quanto também acontece precocemente—coisa de índio.

Até que lá chegou Arthur Virgílio Neto, o atual Senador, naquele tempo aí com uns 25 anos; e ainda bastante garotão, apesar de já muito culto e articulado.

Neto chegou e me apresentou o Jiu-jitsu. Ele, Rircardinho (irmão dele), e Claudinho, pegaram a mim e ao Zé Cury (meu brother gêmeo à época), e começaram a nos mostrar como aquela arte marcial era imbatível, e também a mais inteligente e auto-preservadora que existia.

Para demonstrar, Neto, que não era nem grande e nem forte, pegava os faixas-pretas de Judô e Karatê que por lá havia, não importando o peso e o tamanho, e liquidava com eles com toda leveza da “arte gentil”: o Jiu-jitsu.

Eu me encantei e me entreguei de coração. Quis aprender tudo o que podia. E como já rodava em mim um programa do gênero, desde a infância, então, foi um casamento que para mim era como se tivesse sido desde sempre.

Aqui entrariam um monte de histórias que não fazem parte da objetividade desta narrativa; todavia, em razão de tais coisas e episódios, Neto, Ricardo e Cláudio, voltaram para o Rio; enquanto Zé Cury e eu ficamos lá com alguns inimigos herdados quando da estada deles.

Então vieram as brigas de ruas. Algumas feias. Mandei gente pro hospital. Quiseram me matar. Encomendaram minha morte. E eu tive que sair do Amazonas, conforme conto em detalhes em meu livro “Confissões de um Pastor”.

Assim, em 1972 eu estava de volta ao Rio, em Copacabana, indo morar na casa do Arthur Neto, em companhia de seu pai, ex-Senador; e de sua mãe, irmã, e irmãos, Ricardo e Julio.

Neto, Julio e Ricardo eram alunos dos Gracie e partilhavam de intimidade com a família; em razão de treinarem já há anos na academia deles em Copacabana; sendo que, à época, Arthur Neto já era faixa-preta; e seus irmãos, Julio e Ricardo, faixa-marrom.

Então me internei na academia…

Copacabana fervilhava. O ar era cheio de criatividade e beleza. Havia também um sentimento de enfrentamento, ao mesmo tempo em que reinava a camaradagem.

Aquela paz era um perigo. Aquele perigo era uma paz.

Os velhos Carlos e Hélio eram ícones de meu mundo jiu-jitsuiano. Treinei com Carson, em Niterói; e com Reyson e Roles em Copacabana. Roles era o melhor deles à época; o mais completo; o mais técnico; e quem mais tinha desenvolvido o Jiu-jitsu na família. Além disso, Roles era um cavalheiro; e um ser humano encantador. Morreu jovem, num trágico salto de asa delta em 1984. Eu já era pastor em Niterói. E chorei a sua morte.

Então, com o Roles, era só camaradagem e treino. Já com o Reyson rolava mais; pois saímos pra ‘night’; e, na noite, muita coisa acontece. Assim, não foram poucas as vezes em que saímos no pau com grupos de outras oponentes; quase sempre confusão por causa de mulher.

Rickson já estava lá, ainda bem jovem; exuberante, com sorriso largo; e já demonstrando ser a parada indigesta que seria. Royce também andava por lá, mas ainda era quase menino.

Em 73 uma menina criou uma intriga entre Arthur Neto e eu, e nós nos afastamos por um pouco de tempo, durante cujo período eu fui morar com o Reyson na academia de Copacabana. Então, a vida era no tatami treinando de dia; e, à noite, na night… com tudo o que tinha direito.

Logo Neto e eu nos entendemos e tudo ficou esclarecido; e nossa amizade continuou. Depois de uns tempos eu voltei para o Amazonas; e, logo a seguir, vim a encontrar a Jesus.

Continuei treinando mesmo depois de convertido por mais algum tempo. Mas, de súbito, comecei a sentir que deveria parar. Achava que podiam associar aquilo à violência e, assim, prejudicar o ministério. No entanto, foram algumas reações minhas a provocações de alguns “lutadores”, o que de fato me fez parar; posto que em ambas as ocasiões, quando me dei conta, os caras já estavam quase dormindo. Uma delas contra um coreano, nos fundos da “igreja”, depois de um culto, e após eu haver pregado.

Então parei de treinar; mas o Jiu-jitsu jamais saiu de mim. Papai dizia que o Jiu-jitsu me ajudava muito na hora em que alguém ficava louco, ou quando algum possesso se metia a besta. Eu imobilizava e repreendia. Coisa de menino!

Naquele tempo não havia nenhuma academia formal de Jiu-jitsu em Manaus. Creio que aí por 75 ou 76 o meu amigo Reyson foi pra lá e, assim, formalmente, nasceu o Jiu-jitsu no Amazonas, que hoje é o segundo maior pólo de Jiu-jitsu do Brasil.

Jamais perdi contato com os Gracie. Depois de alguns anos fui reencontrando a vários deles. Na Florida meus filhos tiveram muitas e muitas horas de aulas de Jiu-jitsu com meu amigo Reyilson Gracie, filho do Carlos; e irmão do Reyson, do Carson, do Roles, etc; e primo do Royce, do Rickson, e cia-hélio-ilimitada; bem como pai do Rodrigo Gracie, que luta no Pride e no Abudabe; grandes eventos de Mix Martial Arts no mundo.

Mantenho contato com o Reyson, que é meu vizinho aqui em Copacabana, e com quem estou sempre encontrando; e, ultimamente, falando em voltar a treinarmos juntos; hoje ele e eu longe de sermos meninos como naquele tempo.

Também tive o prazer de ver que o Rosley, um dos filhos de Carlos, irmão do Carson, do Reyson, do Roles e do Reyilson (para explicar os laços), hoje é um cristão que busca andar no Evangelho. Tive o prazer de tê-lo durante três anos no Café com Graça, quando ainda era em Copacabana.

Estou escrevendo isto porque de fato gosto de lutas; e, entre todas, devo dizer que amo o Jiu-jitsu assim como um menino gosta de uma pipa ou um pião.

As aulas de Jiu-jitsu que Carlos Gracie teve com um japonês que vivia no interior do Pará, onde a família Gracie então residia, levaram aqueles dois irmãos (Carlos e Hélio) a desenvolver, com malandragem brasileira, a mais essencial de todas as lutas; sem a qual todas as outras têm pouco valor.

Hoje o Bazilian Jiu-jitsu é o melhor da Terra, e os melhores e mais completos lutadores do mundo são brasileiros.

Tenho os dois canais de luta 24 horas da Net, e assisto muitas horas de lutas por dia. Fazer o quê? Eu gosto mesmo!

O engraçado é ver os crentes brigando. Sim, porque hoje em dia há muitos evangélicos no Vale Tudo. Ebenezer Braga é o mais proeminente entre os Atletas de Cristo que saem no pau no ringue. Patino Macaco entra para lutar com o fundo musical da Cassiane, cantora evangélica. Wanderley Silva tem o peito tatuado com um “Deus é fiel”. Rampage Jackson entra com a Bíblia na mão.

E, assim como eles, muitos outros têm suas marcas religiosas e evangélicas. Fica todo mundo dizendo que vai ganhar em nome de Jesus. Às vezes é luta de crente contra crente. Eu fico rindo do que seria um conflito divino nessa hora.

Outro dia o Ebenezer “fez teologia” depois de ganhar; sendo que da última vez que lutara, no Jungle Fight do Amazonas, havia sido nocauteado acidentalmente por um cruzado de um adversário. Nesse último Jungle Fight, ele disse: “…porque eu sirvo a Jesus em qualquer parada; sei ganhar e sei perder.”

Melhor será quando entrarem no ringue apenas porque gostam e ganham muitissimamente bem. Melhor será no dia em que subirem lá apenas porque são ótimos mesmo; e mais: porque apesar de aquilo parecer violento, justamente o oposto acontecer; pois, quem sabe lutar mesmo, não fica usando para o mal; mas apenas se sente mais seguro.

Aqui não tem nada além da narrativa de um prazer e de uma parte de minha vida, meus interesses, minha história, e minha tranqüilidade em fazer continuidade de coisas que para muitos parecem antagônicas; mas que não necessariamente o são.

É com esses olhos, e a partir dessa história, que eu assisto as minhas lutas.



Caio


Escrito em setembro de 2005