BOAS NOVAS PARA MIM
Nasci e fui batizado na igreja Presbiteriana, por causa de minha mãe, e na Católica, por causa de meu pai.
Mas foi na fé da minha mãe que fui educado.
Preguei pela primeira vez bem antes de me converter.
Eu tinha uns treze para quatorze anos quando me senti tocado numa reunião de oração, e orei com tamanha intensidade e descontrole coerente que se parecia com aquilo que acontece quando “línguas espirituais” são faladas.
Mas eu falava português como quem fala em línguas.
O Reverendo Antônio Elias ouviu, me chamou e me disse: “Filho, Deus deu um dom muito especial a você. Enquanto você orava, eu senti a presença forte do Espírito. Há um dom em você”.
Quem conhece aquele homem sabe que ele não andou pela vida fazendo distribuição de dons como se fossem pirulitos. Ele sempre foi espiritualmente sábio e sóbrio.
Então, por conta disso, convidaram-me para pregar, e eu aceitei.
Preguei, naquele período, umas vinte vezes, sempre com muita Graça, e conversões aconteciam, e centenas de pessoas, nos lugares onde fui levado, disseram que a Graça de Deus estava sobre mim.
Até na reunião de segunda-feira, na casa do Dr Acioli de Brito —famosa no Rio na década de 60, vindo a se transformar em igreja, gradualmente, até chegar a ser a Igreja Maranata, há décadas dirigida pelo pastor Paulo Brito—, eu fui levado para pregar. E quem estava lá deu testemunho do dom de Deus que estava sobre mim.
A questão é que aquilo não era uma boa nova para mim.
Eu não queria me sentir como um médium perseguido pelos espíritos. Eu não queria virar pastor, nem pregador, nem crente, se a cara fosse aquela que eu via cobrindo a face da maioria dos cristãos.
Crer em Jesus, sinceramente, eu nunca conheci um único tempo em minha vida em que o Nome dEle não me chegasse à boca, em todos os vales de sombra e de morte, antes de qualquer possível reação.
Eu sempre soube que eu era dEle!
Mas eu queria viver um pouco. E, conforme eu aprendi com a igreja, a vida com Deus era tudo aquilo que faltava de vida, alegria e prazer. E que crente bom era aquele que sublimava todos os seus gostos e aprendia a chamar urubu de meu louro.
Isso, sinceramente, eu não queria.
Então eu tentei esquecer que eu era dEle, e dei vazão a todos os desejos instintos.
Instintos e desejos sempre tiveram um papel muito forte em meu ser.
Eu fui introduzido objetivamente aos sentidos sexuais muito cedo, com cerca de cinco anos de idade.
Daquela idade para a frente, o único tempo de abstinência relativa foi nos dois anos em que residimos em Copacabana (64-66). Porém, com a ida para Niterói, aos 12 anos, o sexo teve como dar as caras, visto que na vizinhança semi-descalça onde fomos morar, havia mais sexo infantil rolando pelos matagais do morro da Rua Justina Bulhões, no Ingá, do que nas ruas de Copacabana.
Bem, agora, aos 13 para 14 anos, eu sentira o dom, poderoso em mim, mas a força dos desejos e instintos, somados à repressividade proposta pela igreja, geraram em mim um sentimento de pulsão apocalíptica, do ponto de vista psicológico.
Ou seja: o mundo em breve iria acabar para mim, pois Jesus viria me buscar para me usar, e eu, se fosse safo, que usasse de agilidade, e aproveitasse tudo do mundo, antes que Ele viesse me pegar.
Tal instinto desenvolvido, somado a um sentir apocalíptico, gerou uma pulsão existencial poderosa em mim.
Daí entre os 13 e os 18 anos de idade eu ter vivido muitas juventudes. E mais que isso, eu encontrava, ainda adolescente, homens maduros que me diziam: “Nessa área da vida, você, a julgar pelas histórias, tem muito mais para contar do que eu”.
Viver intensamente até que Jesus viesse me buscar para servir ao dom era o meu plano.
Essa era a minha concessão, e, em troca, esperava aquela liberdade temporária.
É claro que tudo isto se dava num plano de sutilezas, e agiam por meio de mecanismos que me eram, então, inconscientes.
No livro Confissões do Pastor —que é minha autobiografia, parte I, pois a escrevi com consciência de que Deus estava virando muitas outras páginas em minha existência—, eu conto um pouco disso. Sim, porque não contei da missa nem o terço. E houve gente que achou que exagerei…
O que eu não sabia é que Jesus já me buscara há muito… eu é que não sabia.
Tenho consciência de que tudo o que fiz na adolescência e primeira juventude o fiz de modo existencialmente diferente de meus amigos.
Eu sentia que para eles tudo era muito mais básico do que para mim.
Eu pecava diferente deles. Eu fazia tudo diferente deles, embora fossem as mesmas coisas.
Fiz “folders” compressos de tudo o que se podia viver, e me alegrei na minha juventude até que fiquei subitamente velho, aos dezoito anos e meio de idade. E comecei a querer morrer.
Foi quando em 1973 eu fui ao encontro de mim mesmo em Cristo, que já era em mim.
E ao encontrá-lo, encontrei-me, e fui encontrado por Ele; quando o achei, me achei, pois sempre havia sido dEle, e somente nEle eu poderia ver minha própria face.
Assim, as Boas Novas que eu haveria de pregar tiveram que ser antes Boas Novas para mim, visto que para Deus eu não era uma Boa Nova.
Eu tive que desejar Aquele que me escolheu!
Ele me quis, mas “se segurou” até eu querê-lO mais que tudo o mais…
Eu estou contando esta história, minha, completamente pessoal, apenas para afirmar que não é o homem que é a Boa Nova para Deus, mas Deus a Boa Nova para o homem.
Hoje eu olho para trás e não tenho como separar a presença do dom de Deus em mim, de Deus mesmo, até mesmo enquanto eu vivia todas as maluquices a que me permiti, fugindo de um dom que mais cedo ou mais tarde me acharia, apenas para descobrir que não era o dom que precisa de mim, mas eu dele; e nem era Jesus quem estava esperando que eu lhe fizesse um favor, Ele é que haveria de me ver chegando, como um pródigo, implorando pela Sua Graça: favor imerecido.
As Boas Novas eram para mim, não eu para elas!
Depois, com o passar do tempo, e com as muitas “bênçãos de Deus” em minha vida, sutilmente, comecei a ficar “evangélico”.
Comecei a sentir —porque pensar não dava; jamais seria tão burro assim— que eu era “uma bênção”, naquela medida evangélica da autoglorificação que o “tom da palavra” carrega nos átrios da religião.
Então, caí em mim outra vez, aí por volta de 1978.
Houve recaídas, todas muito sutis; muito mais emocionais que racionais. Mas logo eu as percebia, e chamava aquela figura sósia, que existe em mim, para um papo de homem, na Graça de Deus.
Eu sabia que ali residia o maior de todos os problemas, e que foi a condenação do diabo.
“Que a soberba não me domine; então serei irrepreensível, e estarei livre de grande transgressão” —era minha oração.
Que a soberba existia em mim e em todos eu sabia. Meu desejo era que ela não me dominasse. Pois até mesmo a oração que afirmasse humildemente para Deus que eu mim não havia soberba, soberba já era em abominável medida.
No entanto, para muita gente, eu virei a Boa Nova.
Tinha gente que gostava que eu existisse como existia, pois, para muitos, minha existência parecia ser “por eles”.
Carreguei esse peso monstruoso muitos anos. E quanto mais eu me dava, pior ficava.
Eu era a Boa Nova. Deus jamais me deixaria sob tal desgraça.
Salvou-me do único modo em que a Boa Nova poderia se mostrar não a mim, mas aos meus irmãos: chamando a si, diante de todos, o homem-boa-nova como um pecador, carente de Sua Graça, e firme nela, sem dela duvidar para si mesmo jamais, e, ainda que esmagado, completamente indisposto a admitir aos homens que seu pecado era ter deixado de ser as Boas Novas de que dele se havia feito.
Quando me pediam que me arrependesse, eu entendia o convite exatamente como o convite ao arrependimento evangélico é: “Passe a ser —ou volte a ser— uma Boa Nova para Deus”.
O “deus evangélico” precisa que sejamos uma Boa Nova para ele.
E eu ousaria dizer, numa hiper-simplificação, que toda esta desgraça que está aí é porque a espiritualidade cristã se propõe a ser uma Boa Nova para Deus.
Enquanto nossa angústia for nos tornarmos uma Boa Nova para Deus, seremos os mais angustiados, complicados, enfermos, arrogantes, invejosos, mesquinhos, abomináveis e disfarçadamente desumanos entre a espécie humana.
Eu dou Graças a meu Deus todos os dias por ter me salvado do papel de Homem Boas Novas para me trazer ao meu cantinho humano, onde celebro seu dom em minha vida e minha vida como dom, ao mesmo tempo em que agora percebo que quando os homens me ouvem, ouvem muito mais a Palavra das Boas Novas do que antes. Visto que antes o mensageiro e a mensagem se confundiam, e muita gente ia para casa com amor pelo mensageiro, mas sem ter levado a Palavra na medida em que a tinham ouvido.
Hoje, quem me ouve, não ouve mais a mim, mas apenas Àquele que me ungiu para proclamar a Boa Nova, que antes de ser para qualquer um outro ser humano, é primeiro para mim, visto que, sem competir com Paulo, eu sei que sou o maior pecador entre todos os homens.
Por isso digo:
“Fiel é a Palavra, e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo morrer pelos pecadores, dos quais eu sou o principal”.
Caio
(Escrito em 2004)