Brasil, um país evangélico. – Revista ISTOÉ/1321 – 25/01/1995

 

Revista ISTOÉ/1321 – 25/01/1995

 

ENTREVISTA

Brasil, um país evangélico

Ex-viciado, o pastor Caio Fábio defende descriminação de drogas, fabrica esperanças, ataca bispo Macedo e explica por que católicos perdem espaço

Por Daniel Stycer e Domingos Fraga

Até um ano atrás, o nome do pastor Caio Fábio D’Araújo Filho, 39 anos, era praticamente desconhecido para além dos templos evangélicos. Líder de um rebanho que congrega perto de 17 milhões de fiéis, a Associação Evangélica Brasileira, que representa metade dos evangélicos do País, Caio Fábio se deu conta de que já era hora de separar o joio do trigo. Começou a falar mais alto e passou a ser ouvido por um público cada vez mais interessado. Apesar de afirmar que não busca o conflito, seu nome vem surgindo como o antibispo Macedo. Amazonense, radicado em Niterói, tem liderado uma série de campanhas cívicas no Rio de Janeiro. Na última delas, subiu morros da cidade propondo trocar armas de brinquedo por brinquedos de verdade. Em 1994 fundou a Fábrica da Esperança, um superprojeto social instalado numa antiga fábrica de 55 mil metros quadrados no subúrbio de Acari. Ali, com a ajuda da Xerox, ele está instalando uma oficina profissionalizante e uma creche para 500 crianças. Nesta entrevista a ISTOÉ, Caio Fábio conta como resolveu largar as drogas (hoje, prega a descriminação da maconha), critica asperamente os evangélicos “rarefeitos”, eufemismo que utiliza para denominar os líderes de Igrejas como a Universal do Reino de Deus, fala sobre a violência no Rio e aponta os motivos para o esvaziamento da Igreja Católica. Ele decreta: “O maior grupo religioso hoje no Brasil já é a Igreja Evangélica.”

 

ISTOÉ É verdade que o sr. se converteu à Igreja presbiteriana depois de estar no fundo do poço das drogas?

Caio Fábio Sou filho de pai agnóstico e de mãe presbiteriana. Em 1964, meu pai foi diretamente atingido pelo golpe militar. A família se arrebentou. Com o golpe, ele perdeu quase tudo. Foi muito humilhado e veio morar no Rio. Cheguei aqui hipersensibilizado. Eu tinha nove para dez anos. Dois anos depois, em 1966, aconteceu uma tragédia que me marcou muito. Uma enchente derrubou vários barracos da favela Pavão–Pavãozinho. Eu ficava ali embaixo contando corpos. Naquele período, comecei a conhecer um monte de gente que estava envolvida com drogas. Todos os meus heróis eram uns drogados. Resisti por algum tempo, mas às vésperas dos 13 anos comecei a me utilizar de drogas leves, depois cocaína. E assim foi até os 19 anos, quando passei por uma crise existencial agudíssima. Comecei a ter idéias autodestrutivas. Numa noite de quarta-feira, em julho de 1973, em Manaus, numa das noites mais sombrias da minha existência psicológica, com vontade de me matar, peguei minha moto pensando em encontrar alguém que tivesse uma arma para me emprestar. Eu dirigia pela avenida Eduardo Ribeiro de olhos fechados na contramão por 30 segundos, com vontade de me arrebentar contra alguma coisa. Eu fumava 14 baseados por dia, cheirava pó umas duas ou três vezes para acabar com a morgação provocada pela maconha e, nos fins de semana, utilizava tudo isso e mais uma série de drogas com anfetamina.

 

ISTOÉ Como foi que se deu sua conversão?

Caio Fábio Naquela noite, passei na frente de uma igreja. Tinha gente transbordando. Entrei. Vi muita gente gritando. O pastor falava e as pessoas respondiam aleluia. Eu era uma pessoa filosoficamente sofisticada, crítica, que fazia parte do underground cultural daqueles dias. Aquele era um mundo que eu repudiava e abominava completamente. Um homem ao meu lado segurava uma criança no colo e toda vez que gritava aleluia a criança chorava. “Esse sujeito é mais doido do que eu. O que estou fazendo aqui?”, me perguntei. De repente, prestei atenção no que o pastor estava falando e “viajei” na mensagem dele. E comecei a chorar.

 

ISTOÉ A que o sr. credita o crescimento das Igrejas pentecostais a partir da década de 80?

Caio Fábio O movimento protestante chegou ao Brasil há 140 anos de maneira formal com as Igrejas históricas (luteranos, presbiterianos, episcopais, metodistas, congregacionais, batistas). Os pentecostais chegaram há 85 anos com as Assembléias de Deus e cresceram imensamente. Cresceram muito antes da década de 70. O boom que aconteceu na década de 80 envolve a Igreja evangélica como um todo. A notoriedade desse movimento é que aconteceu no final da década de 80. E aconteceu de maneira negativa. Já era uma multidão expressivíssima, mas absolutamente encoberta, sociologicamente não notada, politicamente adormecida. Quando surge a abertura e, em 1986, o convite para a sociedade se organizar para escrever a nova Constituição, os evangélicos se levantaram e disseram: “Vamos participar disso.” Só que, dos 35 candidatos evangélicos eleitos, apenas uns oito tinham consciência cristã e política para representar a cidadania de maneira adulta. Os outros eram indivíduos inexperientes e, do ponto de vista ético, alguns eram absolutamente rarefeitos, sem conteúdo nenhum. Outro fator que deu notoriedade aos evangélicos naquele período foi o aparecimento agressivo da Igreja Universal do Reino de Deus. Foi uma Igreja que surgiu liderada pelo Edir Macedo, que, do ponto de vista empresarial, é uma águia, espertíssima, ágil, e que monta uma Igreja baseada no sincretismo entre a fé evangélica e as crenças populares brasileiras. Ele se apodera de elementos como o sal grosso para jogar fora os espíritos maus; a arruda; uma quantidade enorme de pedras de toque. Tudo isso tomado de uma fé bastante agressiva. Houve invasões de casas de macumba para quebrar ídolos, espetáculos televisivos onde se quebravam as imagens de demônios. Há uma guerra simbólica e poderosa com outros grupos religiosos. Além disso, esse indivíduo constrói uma Igreja com ênfase enorme na questão das riquezas materiais, como sinônimo da benção de Deus e como uma chave que abre completamente a prosperidade pessoal. Se você está em estado de pobreza é porque há alguma maldição na sua vida. E a única maneira de sair desse estado é doando muito. A construção dessa arquitetura religiosa e social é tão controversa que esse homem atraiu uma atenção brutal para si e para o seu grupo que deu uma visibilidade terrível aos evangélicos como um todo.

 

ISTOÉ O chamado grupo ético dos evangélicos surgiu então para se contrapor a esses picaretas?

Caio Fábio O que aconteceu foi que nós tínhamos a santa inocência de acreditar que a mídia haveria de descobrir o que era certo e errado nesta história toda. Depois de algum tempo, caímos em profunda angústia porque não aguentávamos mais andar por aí tendo que dar explicações acerca de pessoas e ações com as quais nós não tínhamos nada a ver. Algumas dessas ações nós abominávamos e repudiávamos. Antes de mais nada, é preciso fazer um reparo. Não se pode associar o pentecostalismo à picaretagem. A maioria dos pastores pentecostais que conheço são pessoas sérias e pobres. Cerca de 75% dos pastores evangélicos ganham 2,5 salários mínimos.

 

ISTOÉ O que o horrorizava nas ações da Igreja Universal do Reino de Deus?

Cáio Fábio Em primeiro lugar, esses pedidos ostensivos e esse saqueamento psicológico e espiritual feito ao bolso das pessoas. É um saqueamento dizer “se você não contribuir, a maldição vai continuar sobre a sua vida e a única maneira de você prosperar é dando, e dando aqui”. A maioria das pessoas que está debaixo dessa chantagem é de pessoas miseráveis, algumas desempregadas, passando por uma situação social pavorosa e que estão se agarrando ali como última tábua de salvação.

 

ISTOÉ Qual sua opinião sobre o bispo Edir Macedo?

Caio Fábio Acredito que o Macedo está disposto a morrer por aquilo em que ele acredita. Há um simplismo enorme da mídia em achar que ele é um grande picareta que talvez nem creia em Deus. Ele crê em Deus. Agora, o Deus no qual ele crê é diferente da maneira que eu vejo Deus, o Evangelho e Jesus. Ele acredita ser um enviado de Deus com uma missão messiânica. Ele está disposto a morrer em praça pública por isso aí. Ele acredita que o que ele prega é uma mensagem enviada por Deus a ele, para ele fazer conhecida no mundo. E aí, meu amigo, quando você tem uma finalidade messiânica absurdamente definida na sua mente, os meios tornam-se relativos.

 

ISTOÉ O sr. tem ambições políticas?

Caio Fábio Há dez anos que sou convidado para ingressar em projetos políticos, especialmente em épocas eleitorais. Mas se um dia eu ingressasse no plano político-partidário seria a coisa mais idiota que eu faria.

 

ISTOÉ Como o sr. se define politicamente?

Caio Fábio A minha grande ideologia é o Evangelho. Qualquer outra coisa, eu leio relativizando. Do ponto de vista das liberdades humanas, minhas afirmações soariam semelhantes às de um liberal. Do ponto de vista de compromissos com a sociedade, com os desfavorecidos, meu discurso soa com o pessoal chamado de esquerda.

 

ISTOÉ Então, o sr. é tucano?

Caio Fábio [risos] Não. Também não sou, porque vejo nos tucanos uma postura de extremo polimento. Acho que o ser humano não pode ter medo de correr riscos. Frequentemente pulo o muro.

 

ISTOÉ Como o sr. analisa o fenômeno da violência no Rio?

Caio Fábio Em primeiro lugar, a violência no Rio é maior nos grandes calombos da cidade, os montes, geografias que adensam a visibilidade da produção da violência. Segundo, temos a violência dentro do aparato de repressão, que é tão grave ou pior do que a que é praticada do lado de fora. [Continua. Em breve publicaremos o complemento desta entrevista]

 

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Transcrição:
Aline Bentes.
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