CAIO, COMO VOCÊ CONHECEU O KIERKEGAARD?

—–Mensagem original—– De: Carlos Antônio M. Albuquerque Enviada em: terça-feira, 18 de maio de 2004 21:04 Para: [email protected] Assunto: COMO VOCÊ CONHECEU O KIERKEGAARD? “Depois a depressão… Então a tristeza de não poder mais ser quem era pelo fato das pessoas desejarem que ele fosse apenas aquilo que elas projetavam nele”. Reverendo Caio, É uma honra imensa gozar a oportunidade, através deste canal direto, de ter contato com alguém como você, que já contribuiu tanto pela causa do Evangelho neste país. A sua credulidade em divulgar que o Evangelho resgata “bichos, monstros e pervertidos”, como assim está expresso nas suas “Confissões de um Pastor”, deixa-nos animados para crermos que a despeito da apostasia e do capitalismo da fé que impera no nosso país; existe alguém com o seu comprometimento e com a tatuagem da graça esculpida no coração. Um fato patente e lógico na caminhada histórica da fé é que os profetas são silenciados, serrados ao meio, são hostilizados, martirizados, sofrem toda sorte de infâmia e perseguição, e quando se dá o seu tombo heróico, por causa de um erro humano – o profeta é um ser de carne e osso (Tg 5.17) -, os “Sambalás” e “Tobias” ficam a rir pelos cantos como hienas invejosas. Todavia, as palavras do profeta permanecem vivas e repercussivas; não calam; continuam a gritar e a denunciar a sordidez e a mesquinhez humanos; continuam a clamar, a se auto-afirmar no silêncio da caminhada histórica, porque vêm “do alto, do Pai das luzes”. É assim que o vejo nesta terra, neste país que pouco se diferencia eticamente e religiosamente dos dias dos profetas de Israel. Todo o seu esforço para promover o Evangelho Libertador da Graça neste país, bem como uma consciência espiritual, ética, política, social…não foi em vão. A sua tentativa de treinar “lideres para uma nova realidade”; de levar “a Igreja para fora dos portões”; de sentar os oprimidos, angustiados e enfeitiçados pelo desespero no “Divã de Deus”, não foi inócua. Desempacotar a graça dos embrulhos teológicos com seus “nós” e complexidades, que não permitem a inclusão dos leigos e marginalizados, foi uma atitude heróica; própria dos grandes profetas – a construção de uma Teologia da Realidade. Infelizmente, neste país e no cosmos evangélico, parece que está arraigada no inconsciente coletivo, uma “síndrome de memória curta”, ou de “blindagem inconsciente da Consciência”. E além do mais, a ética evangélica é inquisitória e legalista. Os que mais acusam e se alegram com o tombo do outro, são os que se afundam no lapso moral; são os que mergulham num rio pantanoso de taras e imoralidades. Têm um consciente religioso e moralizado, mas um inconsciente empanturrado de monstros e anomalias geradas a partir do legalismo da religião. A mente do individuo religioso é legalista, e parece mais um cabaré; um bordel aonde se dão as piores orgias e bacanais. Mesmo quando não concretizam o adultério ou o assassinato, já se prostituíram, no coração, e venderam a alma aos sacrilégios do pecado silencioso. Freud estaria correto? Deixa para lá. É sempre assim que se dá – acusa-se o outro enquanto se morre por dentro em guerras e ninhos de cobra da alma. Mas o que me impele a lhe escrever mais uma vez é a curiosidade. Outro dia eu lia no seu site uma reflexão, e ao cabo, foi mencionado acerca da sua predileção e empatia para com o filósofo dinamarquês Kierkegaard, que foi chamado de “irmão”. Nas suas “Confissões de Um Pastor” há também a menção da “tríade” kierkegaardiana de livros – “Conceito de Angústia”, “Temor e Tremor” e o “Desespero Humano” – que lidos causaram um efeito misterioso em você. Pretendo tirar esta minha dúvida por causa da minha simpatia por este profeta. O que o faz ter esta predileção pelo pensamento e pela pessoa deste profeta dinamarquês que “cutucou” a Igreja Luterana e denunciou a cristalização do cristianismo através de “formas” em-pobrecedoras do Evangelho? Ficarei feliz se obtiver a resposta a este questionamento. Apesar de não conhecê-lo pessoalmente, mas por estarmos ligados por laços espirituais em Cristo Jesus, desejo-lhe um beijo no coração. E continue a verbalizar profeticamente contra o não-Evangelho. Desabafo de um seminarista que está sendo preparado para a realidade evangélica. E nesta condição, ou se dança o “tango dos homens” para não morrer; ou se dança o “tango de Deus”, para ser mal interpretado e perseguido. Ou se é um profeta comprometido com o seu Senhor; ou se vende para proferir “as visões do seu próprio coração; visões que não vêm da boca do Senhor”(Jr 23.16). Que Deus continue a cobri-lo com a Sua graça. Carlos Antônio M. Albuquerque ____________________________________________________________ Resposta: Meu amado irmão e amigo Carlos: Muito poder na fraqueza é igual a muita fé, apesar do absurdo! Obrigado pelo carinho de sua carta, que anima o coração cansado. Às vezes tem-se a sensação que se malha em ferro frio. Mas, então, vem Paulo: “No Senhor nosso trabalho não é vão”. No entanto, o meu coração, assim como o dele, às vezes pergunta: “Será que corri em vão?”. É nessas horas que uma carta como a sua diz “não”…e me faz ver que para você não foi em vão…então, muito me alegro no Senhor…e nas vidas de irmãos como você. Quanto ao filósofo dinamarquês Kierkegaard, que digo que é um “irmão de leite” que tenho, fui apresentado negativamente a ele pelo Francis Scheaffer, no livro “A morte da razão”. Eu gostava do Scheaffer, mas ficava chocado com o modo como ele mandava todo mundo pro inferno com a maior facilidade. Foi por causa do modo estranho como o Scheaffer tratou o Kierkegaard, que me motivei a lê-lo. Aliás, todo mundo em quem o Scheaffer batia, eu lia; e em geral dizia: “Esse cara não entendeu o que leu!” Mas foi em São Luís, na casa de meu amigo Marco Gilson, do meio para o fim da década de 70, que li o Temor e Tremor. Gostei tanto que o comprei para mim. Daí em diante visitei uns “sebos”, e achei mais livros dele. Estávamos em 1979. E os li todos até 1982. Depois, entretanto, quase nunca mais o re-li. No entanto, assim como o Scheaffer me foi importante para ver a profundidade da dicotomia entre Natureza e Graça; e também sobre as conseqüências da Queda, assim também o Kierkegaard me foi essencial para fechar meu próprio sentir não-sistêmico da compreensão da fé; o que, de fato, significava não mais compreendê-la, mas vivê-la. Minha identificação com Kierkegaard não vem do ele disse apenas, mas do modo como disse, e que tinha muito a ver com meu modo de pensar e dizer. Num certo sentido, tendo nascido em consciência humana no berço do humanismo de meu avô e de meu pai, antes de sua conversão; e tendo feito parte ativa do modo de pensar do meio da década de 60 e 70, o que Kierkegaard dizia me parecia absolutamente coerente com meu mundo; e, sobretudo, com aquilo que gente como eu chamava de verdadeiro. Foi assim que gostei dele. Ele era um ser de séculos anteriores, mas tinha uma visão da alma humana e de seu desespero, que me era uma visão gêmea. Hoje sei mais dele por meu filho, Ciro, que começou a lê-lo e se encantou. Mas ele faz parte de minhas melhores e mais respeitosas influências. Recomendo, sobretudo, a leitura Temor e Tremor, que além de ser um dos trabalhos mais belos já escritos, também é um dos mais bíblicos; visto que ele entrou fundo na questão da fé que se realiza “em virtude do absurdo”. Mas não são todos que podem lê-lo. Seu estilo não á simples para a maioria; e suas idéias se desenvolvem sem nenhuma preocupação esquemática. Além disso, ele fala muito mais com perguntas que com afirmações, o que faz com que muitos fiquem apenas com as questões, sem ver que a resposta é exatamente a questão. Kierkegaard sabia que tinha uma missão existencial no mundo. Tanto é que nunca trabalhou, e quando o dinheiro que o pai lhe deixara acabou, logo em seguida ele morreu. Morreu quando de Pensador começava a virar Profeta da Rua. Influência ainda maior—ou equivalente—teve em minha vida o irmão Jacques Ellul, um francês extraordinário, e capaz de criar armadilhas das quais nem ele mesmo conseguia sair. Meu desafio era sair por mim mesmo do que para ele era uma auto-armadilha, uma total impossibilidade. Dele eu li quase uns 30 livros densos e provocantes. Infelizmente não há quase nada dele em português. Dou graças a Deus por os haver conhecido; especialmente porque neles me ressinto de mais “patadas de leão” na hora de comunicar. Eles são fortes e até ácidos, mas falta aquele molho de dendê que só a Palavra tem pra dar. Além disso, em ambos me ressinto da falta de poeira do chão das aflições que só o Terceiro Mundo tem para oferecer, sem necessariamente haja uma guerra formal. Viver é guerra nesse nosso chão. E mais: sinto que o mundo espiritual neles está reduzido a potestades apenas terrenas e sistêmicas. Para mim o sistema é diabólico, mas o diabo não está apenas no sistema. Enfim, esses são os pensadores que mais me provocaram. E, sem dúvida, as contribuições que me deram já de muito que fizeram sua própria síntese em mim; de tal modo que eles me são companheiros de jornada, embora o meu caminho se tenha feito de outras experiências; e também de línguas de fogo, de falar em outras línguas, de expulsar demônios, de gritar a Palavra, e de me afadigar na tentativa não apenas de denunciar, mas de propor e tentar, não apenas com a provocação do pensamento, mas com ações, aquilo que para mim era parte essencial da mensagem a ser praticada aos olhos dos homens, como sinalização da fé que se anunciava com a boca. Além disso, eu tenho o privilégio de hoje ser filho de uma geração para a qual a ciência fez contribuições que ainda não existiam nos dias de Keirkegaard, e que apenas se esboçavam ante os olhos de Ellul. Ellul, todavia, viu com clareza aquilo que hoje constitui o nosso mundo; e escreveu coisas que são absolutamente contemporâneas no que tange a realidade que compõe o mundo hoje. Minha viagem é diferente. Eu não fui do academicismo à fé. Eu venho da loucura da vida, assumida como anarquia, até chegar o Encontro com a Graça como fé e amor; e foi isto que me remeteu para a Palavra, para as orações e jejuns, e para o chão das vilas e aldeias, pregando e ensinado, desde os 18 anos de idade. As Universidades, as faculdades, os campus, e as escolas também foram logo o meu lugar de pregação. Depois veio a Tv e as demais mídias. Mas a minha reflexão, literalmente, aconteceu no caminho; e a primeira coisa que vi que me fazia falta, mais que a teologia, era a psicologia; visto que na Palavra eu tinha revelação imponderável de Deus; era conhecível, só não era sistematizável (sempre detestei teologias sistemáticas, embora as lesse). De fato foram as centenas de possessões demoníacas que eu via todos os dias, as realidades que me fizeram ver que muito daquilo não era demônio; e foi quando comecei a buscar discernir as diferenças, de tal modo que, sem o perceber, me enfiei na psicologia…pela via do Evangelho. Ou seja: fiz, academicamente, a viagem inversa a deles, e a da maioria; até porque nunca fui acadêmico, e não gostaria de ser um tal. Tendo o pai que Deus me deu, o academicismo já nasceu para mim morto. Meu pai, antes se encontrar o Evangelho, como eu disse, era um humanista. Depois do Evangelho ele passou a buscar sabedoria em fé. Parece bobagem, mas faz toda a diferença. Ninguém influenciou tanto minha existência quanto meu pai. Nele eu vejo todas as sínteses feitas, e sem complicação, e dele tais coisas jorram misturadas com a dimensão mística, que a meu ver sempre falta a quem pensa. Obrigado pelo seu carinho, e pelo bem que me trouxe a sua carta. Nele, em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos, mas que nos têm sido revelados pelo Espírito, Caio