CAIO, SE VIVER É SOFRER, COMO JESUS É A VIDA?
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From: CAIO, SE VIVER É SOFRER, COMO JESUS É A VIDA?
Sent: Tuesday, December 06, 2005 11:31 PM
Subject: Os sofrimentos causados pela existência
Caro Caio,
Acabei de ler “A Vontade do Mundo como Vontade e Representação”, de Arthur Schopenhauer.
Deparei com a imagem de minha vida nesses 26 anos de existência. Desprezei e tentei entender por todo esse tempo a existência, sabendo que no relógio de uma nova vida seria dada corda e ela passaria pelas mesmas hipócritas regras morais e leis representativas. Digo isso porque desde criança pensava assim. Não me conformava com esse mundo e o modo que as pessoas viviam, mas apenas pelo simples fato de ser homem e ter “vontade” acabei sobrevivendo até hoje.
Confesso que nem mesmo sei se realmente conheci Jesus, pois ainda sou ansioso pelo evangelho fora das barganhas e trocas que já tentei fazer com Ele, e hoje lembro e começo a rir de mim mesmo.
Mas algo vem me intrigando dia a dia. Sei que não posso comparar o Evangelho de Jesus com pensamentos dos homens. Mas deixo minha simples pergunta: Se viver é sofrer, como Jesus é a vida?
Pergunto isso, pois tenho a dúvida quanto à vontade humana em relação aos seus sofrimentos, pois se temos vontade, essa nos faz sofrer, podendo ser curada apenas com a negação da vontade. Mas se negarmos essa vontade, começamos a pensar que estamos agradando a Deus e já nos exaltamos voltando para nosso próprio EU.
Sei que para seguir Jesus há apenas um caminho, que é o AMOR. Sendo assim, quais as ações corretas para se alcançar a graça? A negação das vontades? (Digo, não às vontades que segundo os que se dizem crentes falam, p. ex., beber, fumar… Não essas fúteis, mas sim a de viver.) Ou simplesmente amar? Porém vejo que simplesmente amar não cobriria as vontades da vida que abafam a alma, as angústias de não poder ter algo, e quando possui, a alegria é automaticamente substituída por outra vontade, fazendo com que o indivíduo viva sofrendo, correndo atrás de si mesmo, e nunca havendo uma linha final senão a morte.
Fica meu abraço, aguardo respostas.
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Meu querido amigo: Graça e Paz, pois viver é, de fato, amar!
“Viver é sofrer” é uma confissão da crença budista, de Sidarta, o primeiro Buda.
Todavia, mesmo não dizendo que “viver é sofrer”, Jesus tratou a vida, sem discurso, curando os que sofriam; fato esse que, em si mesmo, faz duas afirmações implícitas:
a) que a vida é cheia de dores;
b) que tais dores não são carmas invencíveis ou que devam ser aceitos de modo passivo e resignado, visto que se assim fosse, Jesus não teria aliviado sofrimentos, curado doentes, libertado perturbados e até ressuscitado gente dentre os mortos; posto que, no caso dos sofrimentos serem os elementos a serem negados, Jesus não deveria “afirmá-los”, tanto diagnosticando tais males quanto curando os doentes.
Assim, para Jesus, este mundo caído não é como “no princípio”, tendo se tornado, pela falta de amizade e vontade de dar razão a Deus, um mundo de “cardos e abrolhos”. No entanto, para Jesus, a cura da dor do mundo não estava no mergulho na impessoalidade budista, na negação do sofrimento pela aniquilação do eu-auto-referente: você e eu.
Aquele que é Deus e que diz de Si mesmo “Eu sou…” não pode propor que a existência seja uma afirmação de “não sou”.
O que existe no Evangelho é um convite para se negar o “eu” que Jesus designou como “si-mesmo”. Isso porque Ele diz: “Quem quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, e siga-me”.
Assim, para negar “a si mesmo”, ao invés de não ter um eu-ativo, eu preciso ter o oposto: um eu maior do que o “si mesmo”. Ora, o “si mesmo” é a fantasia de meu eu-real, não sendo nada além do “eu-carente”. O eu-carente é meu, e é, em parte, eu também; mas Eu sou maior do que o eu-carente que existe em mim.
Na tentativa de “aniquilar o eu”, tanto budistas como cristãos de orientação gnóstica e dualista vêm tentando negar o eu há décadas, sem obterem resultados que sejam coerentes com a vida, ou seja, resultados que desmontem o “eu-carente”, o “si-mesmo”, sem aniquilar o eu-real, o qual, em não sendo forte, pessoal, individuado em consciência e entendimento espirituais, não realiza o abandono do “si-mesmo” ou do “eu-irreal”.
Sim, para negar a “si mesmo” tem que haver um Eu forte e convicto operando sobre o “si-mesmo”, e esse Eu é você, não um não-você.
O que percebi é que você é alguém cheio de desejos frustrados, tímido, aflito por provar certos gostos da vida… Porém, como você foi educado na cultura cristã de negação de tudo o que seja “do mundo” ou desta dimensão palpável, então, o que sobrou em você foi muita raiva de existir num ambiente de negação da vida.
Ora, quando é assim, “viver é sofrer” muito mais para um “cristão” do que para um “budista”.
E por quê?
Na verdade é assim porque o budista não tem em sua negação os valores de negação moral que habitam a alma ocidental, completamente neurotizada pelas culpas cristãs até quando se entrega à devassidão das surubas. Desse modo, quando um budista nega a si mesmo, ele está negando em-si aquelas coisas que podem fixá-lo na dependência e no desejo obsessivo, o qual terá o poder de escravizá-lo. No entanto, quando um “cristão” tenta negar o “si-mesmo”, em geral, ele embarca nas mesmas dores que você; ou seja: nos sofrimentos de ver o mundo e a vida como realidades “proibidas”, o que torna a existência em pura angústia, culpa e raiva.
Quando Jesus ofereceu a Água da Vida —não da morte ou da negação— à mulher de Samaria, Ele oferecia a “consciência de proporção e valor de todas as coisas”. Sim, porque a Água da Vida não é um líquido invisível e místico, mas antes uma consciência de significado absoluto. Desse modo, Jesus ofereceu à mulher algo que daria a ela um significado eterno de ser, o que, em si mesmo, relativiza todas as demais coisas, as quais, sem a referência da Água da Vida em nós, tornam-se deuses existenciais, demandando de nós a obtenção deles como desejo e prazer, abismando nossa vida numa busca sem fim de algo que nos satisfaça para sempre entre as conquistas da Terra.
Desse modo, sem a Água da Vida, existir é sofrer. É algo como ter que vir todos os dias a um “poço” na esperança de quem um dia não se tenha que voltar mais a ele a fim de beber, posto que se teria encontrado algo “para sempre”… o que na Terra não existe.
Não! Em Jesus a Realidade é real, e nunca é objeto de truques psicológicos a fim de que se diminua a dor do ser.
Em Jesus as duas realidades são afirmadas. A primeira como necessidade: água para beber, alguém para amar, um lugar santo para cultuar, etc — todas essas, coisas presentes na busca da Samaritana, e que não foram “negadas” por Jesus. Ao contrário, Ele mandou chamar o “marido” da mulher, e, além disso, também afirmou que ela iria voltar muitas vezes até aquele poço, posto que sede todos teremos sempre. Sim, sede de amar e ser amado todos também teremos nesta existência a maior parte do tempo.
No entanto, em Jesus uma segunda realidade é também afirmada: Quem bebe da Água da Vida, da água do eterno sentido e da razão de ser absoluta, esse sabe que um amor humano é um amor humano, não um culto a Deus; e também sabe que as necessidades desta existência haverão de permanecer conosco sempre. Todavia, se se bebeu da Água da Vida, cada uma delas terá apenas o seu “tamanho-existencial-real”.
A proposta budista joga fora a criança, a água, a bacia e tudo mais, apenas para tirar da bacia a barata. O mesmo faz o “cristianismo”. Jesus, todavia, tira apenas a barata da bacia, e manda que a criança seja banhada e que a vida continue.
Sua aflição, portanto, não é de natureza existencial aguda, mas sim de natureza psicológica, e profundamente vinculada à experiência de negação ou de barganha que você foi ensinado a fazer com Deus; e isto enquanto você mergulhava no “ascetismo” que diz “não proves isto, não toques naquilo, não experimentes aquilo outro”, conforme Paulo já denunciava há 2 mil anos, afirmando que tais coisas têm “aparência de sabedoria”, embora não tivessem e nem tenham nenhum poder quanto a diminuir a carga de “sensualidade” e de “sensorialidade carente” que a alma carrega; pelo contrário, tendo mesmo o poder de exacerbá-las em nós.
Paulo também diferencia o eu-real do eu-ilusório em Romanos 7. Lá o que vemos é a afirmação dele de que havia duas forças em operação nele: uma que o levava a desejar coisas excelentes e outra que o impelia para as leis da animalidade sem amor. E ele diz que até que se entenda que o caminho da crescente e progressiva libertação está em se entregar e descansar no que Jesus já fez por nós, removendo todas as nossas culpas e pecados, ninguém terá outro suspiro a dar na vida, a não ser aquele dele: “Desgraçado homem que sou! Quem me livrará do corpo dessa morte?”
A questão humana não é ludibriar o sofrimento aniquilando a pessoalidade. Sim, a questão humana é outra. De fato, o que Jesus ensina —Ele, que comia e bebia e se alegrava— é que a questão humana é, antes de tudo, aquela que se vincula à necessidade de perdão e libertação da culpa latente que habita a maioria dos humanos, razão pela qual todas as culturas da Terra têm suas divindades, e com elas estabelecem suas barganhas.
De acordo com Jesus, o sofrimento humano mais radical vem da culpa de ser. Isso porque, para quem existir é culpa e pecado em todas as coisas, viver é sofrer. No entanto, para aquele que conheceu o perdão de todas as coisas, e, pela fé, entendeu que todas as coisas são puras para os puros, sobrando para ele o discernimento do que convém e edifica, deixando ele de lado o que não convém e nem edifica — sim, para esse tal, nenhuma dor será mais mortal, visto que em Jesus ele já está livre de toda a condenação.
O que você está precisando é de algo bem mais simples. Na realidade, meu mano, você precisa é descansar no que Está Feito.
A diferença entre a proposta budista e a proposta de Jesus é que na primeira só se obtém sucesso parcial mediante a total evasão da existência, e, sobretudo, mediante o total desapego de todas as coisas. Jesus, porém, está livre de tudo, mas mesmo assim chora diante da morte (embora Ele seja a ressurreição) e se enche de pavor na hora da Cruz (embora Ele mesmo vá ressuscitar).
Voltando a você, eu diria que enquanto a vida for assim, tão moral e tão cheia dos “não podes dos evangélicos”, não de Jesus, o que lhe restará será provar a existência como amarga negação.
Veja só a ironia: eu estou escrevendo para você sobre esse tema, sendo que você é que teria de estar escrevendo para mim, isso se levarmos em consideração que “viver é sofrer”. Digo isto, meu mano, porque já fui “esmagado” muitas vezes e de muitas maneiras; já fui pregado em cruzes; já morri; já ressuscitei dos motos; já sepultei amados mais que a vida; já fui humilhado de todas as formas; desprezado e feito objeto de escárnio; e já gemi muitas dores, angústias e perdas…
E por que nunca pensei que “se viver é sofrer, então, como Jesus é a vida?”
Por duas razões simples. A primeira é que eu sei que no mundo a gente tem aflições, mas que com bom ânimo a gente vence o mundo e suas dores. A segunda é que viver é TAMBÉM sofrer, mas não é SOFRER!
Ora, a vida é também sofrer apenas porque o ato de existir é maior do que a dor!
Sim, existe em toda dor uma pulsão de vida que a transcende, e isso até mesmo na existência daqueles que se matam, posto que ao se matarem, não buscam a morte, mas sim a chance de um alívio.
Ora, buscar alívio é pulsão de vida!
Bem-aventurados os que choram, sofrem, são perseguidos, sentem sede de justiça, se esforçam inocuamente pela paz, etc… — pois eles serão consolados, verão o reino, herdarão a terra, e serão ajuntados aos homens dos quais o mundo não era digno, os profetas.
Assim, viver é apenas sofrer para quem não tem na dor um sentido que a transcende, que foi justamente o que Jesus ensinou.
Quanto a você, aproveite o ensino que você está recebendo no Caminho, e deixe o Evangelho da Graça entrar em você, pois, quando isto acontecer, e você, pela fé, descansar, suas dores existenciais darão lugar a regozijo e prazer… Mesmo nos dias escuros e de dor.
Para mim, em Cristo, a vida tem sofrimentos, mas não é sofrer. Pelo contrário, e mesmo paradoxalmente, mesmo quando dói, eu tenho uma estranha alegria brotando dentro de mim na forma de uma consolação que é melhor que a própria vida, posto que, ela sim, a CONSOLAÇÃO NO ESPÍRITO, é Vida, e Vida em Abundância.
Receba meu beijo e meu carinho!
NEle, em Quem a vida é simples,
Caio