Leitura: Lucas 10
CAMINHANDO SEM DEIXAR PEDAÇOS
Jesus ensinou como é que a gente tem que fazer para não sair deixando pedaços de nós pelo caminho.
O mover humano sobre a terra, em todos os encontros que constroem a vida, em seus múltiplos e interconectivos relacionamentos, estabelece que, muitas vezes, a gente vá levando pedaços de outros em nós; como também cria a possibilidade de que nos deixemos desmembrar e espalhar em muitas partes.
Sim, muitas vezes, deixamos partes de nós como despojo para os que nos usaram, ou nos comeram, ou nos engoliram, ou nos vampirizaram o ser.
Se pudéssemos nos ver com olhos que enxergam o invisível, veríamos imagens psicologicamente horrendas de nós mesmos e dos outros.
Vejo uma menina bela, pura, simples e cândida—e que mantinha tal padrão de ser de modo consistente por mais de 25 anos—, subitamente vir a se apaixonar por um homem duro, grosso, cheio de cavalices, incapaz de respeitá-la, canastrão de baixo nível, beberrão e babão; o qual, pega tal menina e vira sexualmente do avesso; e, depois disso, a mantêm como escrava, adoecendo a alma dela; a qual, agora, usa de sua própria bondade a fim de auto-justificar sua permanência numa relação desrespeitosa e desumanizante.
Mas ela fica com ele. Dois anos depois ela é ainda boa, porém, adoecida pela paixão que se veste de bondade a fim de não ter que encarar o fato de que a visceralidade do vinculo sexual se tornou mais importante que a vida e a paz.
Ela já não é mais a mesma!
O sadio é mudar sempre em nós mesmos; não mudar de nós mesmos.
Encontros podem mudar completamente o sentido e o equilíbrio do ser. Especialmente se as doenças dos que se encontram, são complementares; pois, nesse caso, faz surgir simbioses entre as partes; ou, ainda, faz com que ambos deixem pedaços de si um com o outro, quando do ato da separação.
O mesmo se pode dizer de amizades. Há amizades que mudam as vidas das pessoas para sempre; para o bem ou para o mal. Já vi amigos mais casados e conjugados um com o outro, do que jamais conseguiram ser com suas mulheres ou amantes.
Durante anos e anos de história, convívio, cumplicidades, banditismos, acobertamentos, pactos, admiração, dívidas, testemunho histórico; ou, por último, total conhecimento dos vícios um do outro, muitos vão ficando cada vez mais amigos e parecidos apenas porque estão ficando cada vez mais doentes da mesma doença; sendo, agora, um a doença do outro.
Quando há uma ruptura, fruto de alguma traição, então, cada um segue para o seu lado, agora sofrendo cada qual outra dor: a de descobrir que já não sabe o que nele é dele; e o que nele é do outro—sendo que sofre por algo que nele existe e não lhe pertence, mas lhes faz muito mal.
Tudo o que não sou eu em mim, não faz bem a mim!
É fundamental que em nosso caminhar a gente “não leve nos pés nem a poeira da cidade”, ou do relacionamento, ou do vício e da co-dependência que nos aprisionou entre paredes de espíritos angustiados.
Jesus ensinou que somente a paz pode nos deixar imunes a essas coisas.
Encontros, relacionamentos, amores, paixões, desejos, admirações, ou convívio com gente que não consegue nos acolher ou inspirar na paz, sempre arrancam pedaços de nós e nos corrompem.
Por essa razão, Jesus mandou que quando entrássemos numa cidade ou casa, a primeira coisa que fizéssemos fosse proclamar, com sincero desejo, as seguintes palavras: “Paz seja nesta casa!”
Ele disse que se houver “um filho da paz” no lugar, que nossa paz desça sobre ele; mas se não houver ali espíritos de boa vontade e paz, que nossa paz não se perca como outras formas de energia, como num atirar de pérolas aos porcos.
Ele disse que nesse caso, não se levasse nem mesmo a poeira daquele chão de discórdias nas sandálias que calçam nosso andar.
O que deve calçar os nossos pés é o Evangelho da Paz. Não se pode calçá-lo com as poeiras das energias espirituais da amargura, da cobiça, da luxúria, da megalomania, da maldade e da indiferença.
Assim, Jesus não nos ensina sobre o poder de frases poderosas ou mágicas, como o mero dizer: “Paz seja nesta casa!” Ao contrário disso. Pois, embora Ele mesmo faça tal saudação, conforme as narrativas dos evangelhos, o Seu ensino, todavia, é muito mais sério e profundo do que um dizer “paz”.
Na realidade Jesus estava falando de discernir espíritos. E de não insistir em ‘estadas’ que não promovem a paz, antes nos fazem filhos do ódio, da ira, da hostilidade, ou da antipatia.
Nesse caso, que não se perca energia espiritual—“…que a vossa paz volte sobre vós”—; e que não se leve nada da energia espiritual daquele lugar, cultura, relacionamento, ou mesmo daquela assembléia de ouvintes.
É obvio que para os que rejeitam a paz que é oferecida como fruto da Graça que é emulada pela consciência do Evangelho, o resultado é danoso. Ninguém se encontra com a Boa Nova, a rejeita, e deixa de ficar num estado sete vezes pior do que antes.
Quanto mais se rejeita a paz, pior se vai ficando. A ponto de se ficar pior do que “Sodoma e Gomorra”.
O que se deve saber é que a pessoa humana irradia suas energias o tempo todo. Somente quem anda no espírito da paz é que passa e não se contamina com o que é mal. Quem não anda respeitando o arbítrio da paz no coração, jamais conseguirá passar imune pelos inevitáveis encontros com toda sorte de intenções espirituais malévolas.
Portanto, chegue e ande sempre na paz. E isto não é frase. Também não é um sentir de ausência de desconforto. A paz é densa, é certa, é serena, é ativa, é alegre.
Por isso, não se apaixone pela angustia, não se enamore da aflição, não se amasie com a culpa, não se case com a amargura, não sirva ao desrespeito, não entregue sua bondade à auto-destrutividade.
Não se deve esquecer que quando Jesus ensinou essa verdade aos Seus discípulos, um pouco antes, Ele lhes havia dito: “Eis que vos envio como ovelhas para o meio de lobos”. Assim, tudo o que segue a esta afirmação tem a ver com a proteção do ser-cordeiro no mundo dos seres-lobos.
Não deixe sua paz se perder na casa da perversidade. Não deixe sua paz se perder na congregação dos indiferentes. Não deixe sua paz servir de tapete para o vomito dos tiranos que desejam se deitar sobre sua vida.
Que nenhum pedacinho de você fique arrancado e largado por aí. Que a paz seja o poder que proteja você de ser engolido na casa dos lobos.
Não brinque com o ser-lobo. Ele não ama a paz. De seu ambiente espiritual não carregue nem mesmo a poeira.
Mas se você deixou pedaços, não se desespere; apenas descanse na paz. Isto porque quando alguém se deita na paz, que é fruto da confiança, então, tudo o que é “nós”, volta para nós; e tudo o que não é “nós”, sai de nós.
É a voz daquele que diz como Ezequiel “Senhor Deus, tu o sabes!”, aquilo que inicia o processo que rejunta os pedaços dos ossos secos, e os faz tornarem-se corpos inteiros, completos e vivos.
Enquanto anda, anuncie a paz com sua vida. Anunciar a paz também faz belo o caminho do caminhante. “Quão formosos são seus pés!”
Não há pés mais belos, não há charme mais cativante, não há caminho mais admirável, do que o daquele que anuncia e vive a Boa Nova como paz.
Além do quê, o único ser que pode abraçar a si mesmo com sentido de inteireza é aquele que se deixou pacificar pela confiança. Esse não deixa pedaços de si mesmo por aí.
Caio