DEBATE – CAIO FÁBIO X PAULO COELHO – 1997




DEBATE – CAIO FÁBIO X PAULO COELHO – 1997

Esse foi um Debate promovido pelo Jornal O Dia. E também foi capa da revista “Vinde” em maio de 1997. Estavam presentes várias pessoas assistindo ao debate, mas quem fez a mediação, para que esse encontro acontecesse, foi o meu amigo Jornalista Otávio Guedes, hoje chefe de redação do Jornal Extra.

Caio

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· MISTICISMO

PAULO COELHO – Tudo é fé. Na verdade, o que é capaz de remover montanhas transformar o ser humano é a fé. A fé é um passo que você dá sem saber o resultado. Mas com a certeza de que alguém está segurando sua mão. Já o misticismo seria um subproduto da fé, que levaria ao fanatismo e à superstição.

CAIO FABIO – O misticismo é uma fé envolta por credulidade e a fé é uma percepção do mundo invisível que o trata com cristalinidade. A fé se projeta para o centro de poder do universo, que é o Criador. E o misticismo se concentra nos elementos intermediários, ao invés de se concentrar naquele que irradia toda vida e todo poder. Se concentra nos aparatos, nos instrumentos, nas pedras de toque, nos mediadores visíveis. O grande desafio que a gente vê na Bíblia é exatamente este: não colocar nesses instrumentos, nesses mediadores menores, a fé que a gente deve depositar no Criador acima de tudo e acima de qualquer coisa.

· IDOLATRIA

CAIO FÁBIO – A idolatria é uma fé reduzida, confinada, a serviço do objeto tocável, palpável, e que se esqueceu que a causa de todas as coisas é invisível, que é o Criador.

PAULO COELHO – Aí começam as diferenças entre mim e o pastor. Eu sou católico. Saindo do catolicismo e indo para a origem ao cristianismo, para um momento anterior ao cisma, a Igreja Ortodoxa sempre nos colocava a iconografia, o ícone era a manifestação de vida, da presença e da beleza de Deus. Ou seja, o sujeito ia para ali, pintava aquela imagem, e ao pintar aquela imagem não era simplesmente o ato de passar um pincel. Ele procurava manifestar a beleza que estava vendo e condensa-la no sentido de mostrar como ele a percebia. Por outro lado, como nós somos seres humanos que não atingimos a perfeição, nós precisamos de um elemento catalisador. Eu, por exemplo, me ajoelho diante de São José, que é meu santo padroeiro. Ao contemplar a visão que alguém teve de São José, eu consigo usar aquela imagem para me catapultar para uma energia maior.

CAIO FÁBIO – A questão passa por duas variáveis. A primeira é o que, existencialmente, você possa sentir num dado momento, fitando um objeto que para você tem um poder inspirador. O outro é aquele que é o caminho aberto pela revelação de Deus nas Escrituras, que é um caminho de construção com o invisível, exclusivamente pela fé. Aí, a gente tem o grande clamor de Deus a Moisés no deserto: “Ouve, ó Israel, o Senhor teu Deus é o único Deus e não esqueças de que no dia em que o Senhor falou contigo no deserto não viste nem imagem, nem contorno, nem coisa alguma, porque Deus é Espírito”.

PAULO COELHO – Mas Deus mandou Moisés construir uma serpente.

CAIO FÁBIO – Eu vou chegar lá. Então há esse objeto de adoração universal, invisível. E aí vem Jesus e repete isto, falando a uma mulher de Samaria que quer adorar, mas não sabe onde, se no monte Gerizim ou em Jerusalém. Jesus diz: “Mulher, vem a hora, e já chegou, que nem aqui neste monte, nem em Jerusalém, adorareis ao Pai. Porque Deus é Espírito e importa que seus adoradores o adorem em Espírito e em verdade”. Então quando a gente está falando de uma relação adulta, madura, a gente está falando de um relacionamento que vê o invisível pela fé, que encontra satisfação na relação com o intangível e que assume a intangibilidade de Deus como a única forma possível de se relacionar com Deus. Com relação a Moisés e aquela cobra do deserto, a gente está no ponto em que eu quero chegar. Quando Moisés mandou construí-la, quem olhasse aquela serpente de bronze seria curado das mordeduras das víboras que tinham entrado no acampamento de Israel, como uma maldição pela desobediência deles. Alguns anos depois, você vai recordar, Deus mandou destruir aquela serpente de bronze porque ela virou fetiche. Aquele era um elemento absolutamente circunstancial, apenas materializador de uma mensagem. E a mensagem era basicamente a seguinte: a maldição de vocês está sendo absorvida por um igual. Serpentes matavam, e aquela serpente de bronze que foi criada por Moisés era a materialização do fato de que esta maldição que mata hoje está sendo absorvida por esta serpente aqui, mas esta serpente não tem nenhum valor intrínseco, é só bronze. Aí o povo de Israel ficou tão apaixonado pela serpente que passou a cultuá-la. Então Deus mandou destruir a serpente.
PAULO COELHO – Exatamente. Aí reside o perigo. O perigo de você pegar um meio como se fosse um fim. Para mim, Deus é visível, e não invisível. Quando você olha uma flor, ou olha o mar, isso é uma manifestação visível. Ele está em cada coisa. Em coisas que o homem criou ou que Ele criou. Então, quando você chega a este ponto, você olha o mar e de repente entende que ali está Deus – aí, o mar desaparece e você vê Deus.

CAIO FÁBIO – Quando a Bíblia fala da natureza, ela está falando dos atributos. Deus está presente em todas as coisas, mas todas as coisas não são Deus. Quando você parte para a idéia de que todas as coisas são Deus e não parte para esta contrapartida, a gente confina o Criador nesta prisão cósmica.

PAULO COELHO – Eu fiz uma música assim com Raul Seixas: “Saiba que eu estou em você, mas você não está em mim”. Era uma música chamada Gita, e era baseada na idéia de Deus.

· RELIGIÃO

CAIO FÁBIO – Pessoalmente, acho que a religião exerce um papel de aio, como diz o apóstolo Paulo. Aio era aquele escravo romano que pegava crianças na creche, levava pra casa, pegava de casa e levava pra creche. Em outras palavras, a religião é uma medicina para algo humano, mas está absolutamente longe de ser o ideal divino do desenvolvimento da espiritualidade de qualquer pessoa.

PAULO COELHO – Concordo. Caio tem uma religião, ele é pastor e eu sou católico, mas acho que nós dois vemos com suficiente clareza que a religião é um caminho. Eu não encontrei Deus pela religião. Encontrei Deus porque o perdi. Você só pode encontrar uma coisa que você perde ou que nunca teve. Partindo do princípio de que a gente sempre tem Deus desde o nascimento, você só o reencontra se ousar perdê-lo. Jesus escolheu Pedro porque ele foi o único que ousou perdê-lo, foi colocado na mesma bandeja com Judas. Ou seja, um traiu e outro negou, um aceitou o perdão de Deus e outro não aceitou, negou tudo o que Jesus tinha falado e se enforcou. Acho importante esse processo de negação, acredito muito na rebelião, espiritual e interior. Uma fé submissa é, para mim, fundamentalista, que qualquer coisa pode abalar. Eu sempre fui muito curioso e meio ousado. Claro que eu podia ter me estrepado. Cada passo que se dá é um risco. Até a luz é um risco, porque se você ficar olhando muito o sol, você fica cego.

CAIO FÁBIO – Mas é bom lembrar que Lúcifer é sede de luz.

PAULO COELHO – É preciso experimentar todos os vinhos para saber qual é o melhor para você. Não se pode sempre dizer não, mesmo que você apanhe. Eu sou um cara que continua, enfim, procurando. Hoje em dia eu aceito muito mais do que eu aceitava antes, mas continuo prestando atenção em tudo, agora, procurando guiar meu coração.

CAIO FÁBIO – Eu diria o seguinte: a religião nunca me seduziu, nunca me fascinou. Ao contrário, eu entendi há 23 anos que a religião era apenas um meio sofrível que poderia me oferecer um espaço de convívio com a fé, um convívio mais próximo, mais identificável com gente que estava na mesma caminhada confessada que eu estava. Mas os conflitos que eu tive – e tenho – com a religião são grandes. A grande fascinação exercida na minha vida foi a pessoa de Jesus e a percepção de que Ele não cabia em projeto religioso nenhum. Os cristãos que têm fé em Jesus podem ser de Jesus, mas Jesus não é dos cristãos. Ele é maior do que o cristianismo, maior do que todas essas construções religiosas que estão aí. Eu percebi e devo isso a duas coisas: em primeiro lugar, a uma revelação do Espírito Santo, através da Palavra de Deus; além disso, a uma bagagem histórica. Foi muito útil ter sido hippie, foi muito útil todo aquele processo de questionar instituições.

PAULO COELHO – Você foi hippie? Eu também fui hippie, e hippie mesmo (risos).

CAIO FÁBIO – Juntar a rebelião hippie com a revelação do Espírito Santo cria no coração um desejo enorme de conhecer a Deus, de amar a revelação visível de Deus nesse mundo, que é Jesus, e a consciência constante de manter uma relação de permanente tensão com a religião. Ou seja, é uma relação de love and hate, eu te amo e eu te odeio (risos). E fica o tempo todo, porque no dia em que você apenas odiar, corre o risco de perder a comunhão com milhões de pessoas que estão conscientemente andando na direção que você diz estar andando. E no dia que você amar radicalmente e totalmente, você corre o risco de ser domesticado por uma espiritualidade pequena que rouba de você a percepção de sua irmandade fraterna – extremamente maior do que a religião.

· LIVRE ARBÍTRIO

PAULO COELHO – Eu acredito que o livre arbítrio é uma área muito pantanosa para se discutir, mas acho que ele usa essas pessoas que, teoricamente, exercem o livre arbítrio para negar a Deus ou para mostrá-lo, você me entende?

CAIO FÁBIO – Claro. No fim de tudo, todas as coisas vão cooperar para o bem dos que amam a Deus e para a glória de Deus.

PAULO COELHO – Eu posso abstrair. Deus, no jardim do Éden, pôs a serpente para usar como símbolo para colocar o universo em movimento, para que as coisas pudessem fazer esse percurso e voltar ao ponto de partida, que é o bem de quem ama a Deus e a grandeza de Deus. Se não houvesse todo esse círculo seria um horror, nós não estaríamos aqui, não estaríamos combatendo o bom combate, fazendo parte dessa missão. Agora, além de tudo, eu respeito o mistério. A primeira pergunta foi sobre a fé, e a fé é você dar um passo no escuro, só que com coragem, sabendo que alguém pega tua mão e te conduz. Eu só consigo ir até aí, só consigo ver até aí e não tem como ir além disso.

CAIO FÁBIO – A tentativa de ir para além disso é uma tentativa demoníaca, luciferiana, é querer concorrer com o Criador. Agora, em relação ao livre arbítrio, Deus não deu tudo programado, por uma razão muito simples: da coisa programa não ia brotar amor. E Deus é amor. O amor de Deus, ou qualquer outra forma de amor, só existe se puder haver uma porta aberta para qualquer outra coisa que não seja amor, que seja a opção, como virar as costas por não querer falar. Então, o fato de que Deus é amor não dá a Ele qualquer outra chance de criar seres inteligentes que não possam dizer: “eu não quero te amar”. Essas são algumas das limitações intrínsecas que existem no universo. Um ser relativamente livre, que sabe que existe, mas que não tem nenhuma outra chance de ser qualquer outra coisa, então é uma máquina de confessar amor por Deus. Aí teríamos uma contradição. Deus corre o risco e não ser amado, mas Ele prefere reste risco do que a certeza de um amor que não tem chance de ser qualquer outra coisa.

PAULO COELHO – Eu acho que Ele não corre o risco. Acho que Ele sabe a fim da história.

CAIO FÁBIO – Claro. É por isso que Ele é Deus (risos).

· ATEÍSMO

CAIO FÁBIO – Eu nunca encontrei um ateu de fato. Eu encontro pessoas com incapacidade de aceitar certas idéias de Deus. São muito mais reações de natureza psicológica a determinadas formas nas quais o sagrado é embalado do que propriamente uma rejeição de Deus. Há pessoas que foram tão esmagadas, tão traumatizadas pela tirania institucional do sagrado ou da religião que nunca conseguiram perceber Deus para além daquelas fronteiras e que dão uma resposta raivosa a essa opressão. Há a visão analítica da presença histórica da religião na civilização humana, que foi o que fez Marx e outros olharem para o fenômeno religioso e negarem este fenômeno. Eles trouxeram para dentro dessa idéia a negação de Deus porque, na cabeça deles, a idéia de Deus estava profundamente arraigada naquele processo de dominação histórica que eles estavam abominando com razão de ser. Porque até Deus abominava aquilo. Mas, fora disso, eu nunca encontrei ninguém cujo ateísmo não pudesse ser explicado.

PAULO COELHO – Cada vez que uma pessoa diz “eu não acredito em Deus”, na verdade, a frase não acaba aí. É quase um pedido de ajuda. É como se dissesse: “por favor, me responda”, entende? Se você não polemiza, não é isso que interessa à pessoa. Ela quer que você polemize, quer que você fale. Dizer que não acredite em Deus é como um pedido de ajuda. Se não, ela não teria nem necessidade de dizer isso. Fizeram uma pesquisa agora, e deu 1% de ateus.

· FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO

CAIO FÁBIO – Qualquer fundamentalismo é igual, seja religioso, científico ou político. E todos eles trabalham em cima dos mesmos propósitos. A pessoa acredita na possibilidade da sintetização de toda a verdade. O fundamentalista é o indivíduo que acredita que cabe na cabeça dele, na liturgia dele, tudo aquilo que a gente possa chamar de verdadeiro.

PAULO COELHO – O risco do fundamentalismo é grande, porque a gente acaba partindo para a idéia de que “o meu Deus é melhor do que o seu”. Assim como a fé, a busca espiritual se transformou na questão central da existência humana, e o será nos próximos 100, 200 anos. E como as pessoas acham que não sabem ter fé, se sentem indignas, elas tendem se segurar numa idéia fechada de Deus. Isso então vai provocar, daqui a um tempo – se a gente não cortar o mal pela raiz -, guerras religiosas. Vai provocar novamente a luta pela coisa mais ilógica do mundo que é: “O meu Deus é mais forte que o seu”. Esta luta não tem como acabar, porque se você conseguir impor o seu Deus, você já acabou com tudo. Isso me preocupa muito.

CAIO FÁBIO – Todo fundamentalista é pagão, porque é confinador daquilo que é inconfinável, que é Deus. O fundamentalismo pratica a mais estúpida tentativa que o ser humano pode fazer sobre o Criador, que é tentar domesticar Deus. Ou então querer dizer até onde Deus vai, o que Deus pode e o que não pode fazer, ou a quem deve ouvir. O fundamentalismo entende que Deus está a serviço da religião, e isso é paganismo cego, inverte a ordem universal, na qual todas as coisas existem para Deus e em Deus. E Deus é aquele que tem a absoluta liberdade de ser, sem jamais explicar porque Ele resolveu ser o que Ele é. Esses grupos todos que falam de maneira obcecada e fanatizada sobre fé, em geral, são os mais inseguros e os mais resistentes, porque não têm capacidade de aceitar qualquer encontro com qualquer coisa que eles acreditam, sob pena de que isso sacuda e enfraqueça os fundamentos, sobre os quais não admitem que se façam perguntas.

PAULO COELHO – Muito bem explicado.

CAIO FÁBIO – A maior luta de Jesus foi contra os fundamentalistas. Foi o fundamentalismo que matou Jesus. O fundamentalismo que não aceita que o milagre seja feito no dia de sábado, que diz que Jesus não pode tocar nas coisas que ele toca, comer a comida que come, conviver com as pessoas com quem convive.

· DEMÔNIOS

CAIO FÁBIO – Eu acredito. Não como uma encarnação do mal. Acho essa visão muito simplista. Não existe, nesse universo, nada que não seja criatura. O único que é, é o Criador. Todas
as outras formas de existência são derivações Dele, são criações Dele. Só que algumas dessas criações existem e não sabem. Existem para outrem, não para si mesmas. Possivelmente, (o planeta) Júpiter não diz: “Eu sou Júpiter!” (risos). Mas existem outras criaturas com consciência de si. Em graus menores ou maiores, esses seres – que se conhecem e dizem “eu sou”, que sabem que existem, que se percebem – carregam dentro de si a virtude absolutamente radical que é a de decidir que seres eles querem continuar a ser. Eles fazem opção, como eu faço todos os dias. Todos os seres inteligentes que se auto percebem no universo têm poder de decidir. Eles não são máquinas solares, não são seres programados para um tipo de função, para fora das quais eles não tenham chances. Quando a Bíblia fala de demônios, ela está falando de seres que se conhecem e que, em algum momento na história do universo, iniciaram um processo de exercício de vontade além dessa contemplação apaixonada pelo Criador. Ou seja, demônios são narcisos incuráveis, que, ao invés de se saciarem com a beleza do criador, olharam para si e disseram “eu sou”. E aí, o centro do universo mudou e eles passaram a ser o centro, nesta busca de centralizar todas as coisas em si. Inicia-se um processo de tentativa de sedução da criação para fora dessa paixão, desse amor pelo Criador. Então, essa é uma maneira psicológica de descrever o surgimento do fenômeno demoníaco no universo.

PAULO COELHO – Vejo o demônio como braço esquerdo de Deus. E vejo que, na nossa limitada capacidade, criamos demônios artificiais que podem até se materializar e interferir, na medida em que você esteja nas trevas, na medida em que você acredite no poder desses demônios. Então, eu crio o demônio x e começo a mentalizar aquele demônio em outra pessoa. Se a pessoa acreditar no demônio que criei, então ela está perdida. Na medida em que você não se deixa possuir pela fé naquele demônio que foi criado, ele deixa de existir. Os demônios têm muitos nomes: inveja, avareza… Se você acredita nestes demônios, dançou.

CAIO FÁBIO – Paulo, acho que a gente está falando de duas coisas. A primeira é: existem demônios objetivos, reais, seres, entidades antagônicas ao amor de Deus nesse universo?

PAULO COELHO – Existem.

CAIO FÁBIO – Sim, mas esses seres não foram criados por Deus demoniacamente. Eles se tornaram seres demoníacos. Então, nesse sentido, eu não acredito que os demônios sejam o braço esquerdo de Deus, cumprindo uma missão. O que quero dizer é o seguinte: tenho a liberdade, pela minha existência individual, de exercer funções antagônicas ao amor de Deus no Universo. Eu posso ser um irradiador de ódio, de amargura, de morte, de tudo aquilo que desagrega. Foi por isso que falei que são duas coisas diferentes. A primeira é o demônio como um ente no universo, e é isso que eu estou gastando esse tempo todo para falar. Esse exercício deu na liberdade individual contra o amor de Deus. Esse é o demônio, e existem também os demônios que são projeções de nossos medos, temores, perversidades, maldades que tanto vão de mim para o outro como vêm do outro para mim. Esse demônio é só troca. Agora, esse outro que é entidade, independentemente de eu acreditar que ele existe ou não, ele existe.

PAULO COELHO – Mas essa força é igual a Deus?

CAIO FÁBIO – Claro que não, ela é criatura.

PAULO COELHO – Se ela é criatura, então ela teve um criador.

CAIO FÁBIO – E o criador é Deus. Ele criou seres como eu e como você, que têm consciência da própria existência. Agora, justamente porque eu sei o que eu sou, posso sair daqui, chegar ali fora e abraçar alguém ou esmurrar alguém. Eu posso existir a favor do amor de Deus ou contra o amor de Deus, e aí eu posso me demonizar. Quando a Bíblia fala de demônios, está falando de entidades espirituais que exercitaram a sua vontade contra o amor de Deus.

· LUTAR CONTRA DEUS

CAIO FÁBIO – Na Bíblia, os homens a quem Deus levou mais a sério foram os que lutaram contra Deus.

PAULO COELHO – Jacó, por exemplo.

CAIO FÁBIO – É, Jacó, que sai no pau com o anjo a noite inteira (risos). E no fim, Deus diz: “Olha, Jacó, você agora vai se chamar Israel, que significa aquele que contendeu com Deus”. E Deus diz isso numa boa. Você pega Moisés, por exemplo, que chega para Deus e diz o seguinte: “Olha, ou o Senhor continua sendo Deus deste povo aqui e anda com este povo, ou então me risca do teu livro, então não vou mais andar contigo também”. E Deus chega e acolhe este indivíduo, porque, estranhamente, Deus não gosta de uma relação com Ele que não tenha coragem de lhe fazer perguntas.

PAULO COELHO – Posso fazer uma observação?

CAIO FÁBIO – Pode.

PAULO COELHO – Essa idéia me anima muito, porque, como católico, eu acredito no mistério da Trindade, e Deus luta com Deus na medida em que Cristo, em dois momentos que estou me lembrando agora, o rejeita. Um, foi quando disse: “Pai, afasta de mim este cálice”. Ele não vai aceitando, entendeu? E outro foi pouco antes de morrer, quando Jesus diz: “Meu Deus, por que você me desamparou?”. Entendeu? Ele, sendo Deus, luta consigo mesmo, e nós podemos ser a favor de Deus ou contra Deus. O que nós não podemos ser é sem Deus. Essa relação passional que nós temos com Deus é fundamental, porque nos culpamos muito de tomar, às vezes, a atitude que Jacó toma quando ele luta com Deus. Ele peita e passa a noite inteira, e na hora que essa pessoa quer partir, ele diz: “Não, não vá embora, você só vai embora se me abençoar”. E aí ele é abençoado.

CAIO FÁBIO – E Deus muda o nome de Jacó para Israel como prêmio. Israel é um nome que etimologicamente significa “aquele que lutou com Deus”.

PAULO COELHO – Exatamente.

CAIO FÁBIO – Quer dizer, o prêmio histórico dele é ter sido aquele que lutou com Deus e venceu.

PAULO COELHO – E nós nos recusamos a aceitar que podemos, muitas vezes, lutar com Deus, isto é, combater o bom combate. Aí vem a culpa, você se acha longe de Deus, e diz: “Ah, eu não sou digno e acabou”. Um cara que não lutou com Deus foi Jó. Jô é um cara que vai aceitando tudo. Ele é o profundo cumpridor de seus deveres, está ali, fiel, prestando todos os seus sacrifícios, profundamente agradecido, e é esse a quem Deus pune.

· JUSTIÇA DIVINA

CAIO FÁBIO – Tem uma coisa interessante, pensando em Jó. Enquanto ele é obediente, disciplinado, certinho, absolutamente grato, bem sucedido, próspero, ele conhece a Deus só de ouvir. Depois ele perde tudo o que tem e ganha um câncer de pele, passa pela agonia, experimenta a contradição teológica trazida pelos amigos dele, que querem encontrar na sua dor alguma coisa que seja explicada pelo pecado. Mas ele diz: “O fato de passar pelo que estou passando não tem nada a ver com pecado”. E aí ele abre o coração e inicia um processo de confrontos e de lutas enormes com Deus para, no fim do livro, chegar e dizer a súmula de todas as coisas. Ele diz a Deus: “Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te vêem”. Ou seja, antes, quando estava naquela prosperidade abençoada, ele era apenas alguém que sabia de Deus. Agora, depois de um despojamento profundo, radical e de lutas com Deus, noites escuras, perguntas e argüições…

PAULO COELHO – E injusto, aparentemente. Porque, afinal de contas, ele – e quantas vezes nós – vamos tirar de Jô e trazer para a gente -, quantas vezes sentimos Deus injusto? Entenda, a gente está fazendo o trabalho dele, está dando o melhor da gente, procurando cumprir aquilo que nós acreditamos ou entendemos como fé, e de repente vem um problema que não estamos esperando. Então a gente sente o roçar do que a gente acha que é injusto, mas, na verdade, e o Caio falou bem, é o momento em que Deus está cutucando para você entender a interferência dele na sua vida.
CAIO FÁBIO – Até porque, de alguma forma, Deus não tem nenhum compromisso com a realização de qualquer tipo de justiça cartesiana em relação a nós. O desejo e o compromisso Dele é de fazer a gente crescer, se tornar gente e perceber o mistério de Deus, a grandeza dessa revelação de Deus e de nos fazer dar um salto para além dessa relação com Deus que é meramente informada que é daquele que sabe sobre Deus, acerca de Deus ou de Deus. Ou seja, ele nos põe para além da teologia, que é o estudo de Deus, uma coisa muito primitiva. Jó diz: “Antigamente, eu te conhecia só de ouvir, agora eu transcendi a isso, os meus olhos estão vendo o invisível”.

· PAULO COELHO FALA DE CAIO FÁBIO

PAULO COELHO – O que eu conheço do Caio são as obras. Para citar a Bíblia, ela diz que pelas obras, não importa se você tem fé ou não, Jesus faz a famosa definição das pessoas. É pelos frutos que se conhece a árvore. Essa definição está presente em várias outras culturas, em várias outras religiões também. A pessoa pública que Caio é e o trabalho que ele realiza são muito claros para mim. Não é o cara que só fica teorizando a respeito de Deus. Ele sabe que Deus se manifesta visivelmente.

· CAIO FÁBIO FALA DE PAULO COELHO

CAIO FÁBIO – Eu o acompanho há muitos anos e via algumas pontuações na sua vida bem marcantes. Quando eu comecei a perceber Paulo Coelho no horizonte do Brasil, há muito tempo, percebi uma pessoa com uma sede enorme de Deus, querendo essa Água da Vida. Fui vendo que sua obra, por exemplo, é uma jornada espiritual. A gente começa com um Paulo Coelho que assumia uma imagem pública. Para mim, que estava de longe olhando, você era um bruxo no início. Aí esse bruxo vira mago. Aí esse mago vira escritor e depois vira um católico que escreve (risos). Eu estou vendo essa jornada e, para mim, o ponto de virada foi no dia em que o vi dando uma entrevista – não me lembro se para a Marília Gabriela, foi num Cara a Cara desses -, quando você disse o seguinte: “Eu encontrei as trevas, e você não pode imaginar o que é isso. Ninguém deve brincar com isso”. Houve uma profunda virada, que eu senti na sua maneira de ver quando você fez essa declaração e a sua caminhada vira numa outra direção daí em diante. Há muitos anos eu oro regularmente por você.

PAULO COELHO – Muito obrigado, não pare de rezar (risos).

CAIO FÁBIO – Oro sempre pedindo a Deus que o fluxo da graça dele sobre a sua vida permaneça sempre, que Ele tome você pela mão todos os dias. Não sei se você se recorda, mas eu acho que há uns três anos sua assessoria e a minha secretária várias vezes tentaram marcar um encontro entre nós. Por que aquilo? Fui eu que tomei aquela iniciativa, porque eu vinha de longe olhando isso. O encontro não houve porque você viaja muito e eu também.

PAULO COELHO – Eu me lembro disso, sim.

CAIO FÁBIO – A gente se encontrou na ponte aérea e conversamos rapidamente. Há quanto tempo que eu venho desejoso de que essa aproximação aconteça e estou feliz depois disso.

 

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Transcrito por Fábio Menen