Ora, se há um conceito de “carnalidade” expresso por Jesus, ele não aparece em relação a publicanos, meretrizes e pecadores, mas sim, diretamente vinculado aos religiosos de seus dias, e, entre esses, os mais “zelosos”: os fariseus e autoridades religiosas!
Para Jesus o homem carnal é, sobretudo, o religioso presunçoso e arrogante. É ele, o dono da verdade, aquele a quem o Senhor chama de “hipócrita”.
A maior carnalidade para Jesus é não se enxergar e, ainda assim, ser capaz de julgar o próximo. E pior: tentar “clona-lo”, fazendo-o, duas vezes pior do que nós!
O dialogo de Jesus com Nicodemos também nos mostra o que, do ponto de vista do Senhor, é um homem carnal— nascido apenas da carne—, sofrendo da carnal presunção de se sentir e se perceber—auto-enganadamente, é claro!—, como um mestre, um ser formado, acabado, e, a quem, Ele, Jesus, disse ser necessário nascer de novo.
O carnal não sabe que é carnal, afinal, ele se vê como um ser acima de tudo e todos, pois, em seu auto-engano, está “formado”. Esse é, segundo Jesus, um carnal que precisa urgentemente nascer da água e do Espírito e se deixar levar pelas incertezas do vento!
O culto à segurança pode ser uma terrível expressão de carnalidade, segundo Jesus!
Ora, pela Leitura dos evangelhos, não vemos Jesus associar a “carnalidade” aos banquetes, às festas, aos casamentos, às alegrias nas praças, aos erros humanos e, nem ainda , à infelicidade congênitas ou aos desastres.
Nem tampouco vemos Jesus chamar de carnalidade o cansaço, a irritação, a ira justa, ou mesmo a violência que nasce das respostas à sobrevivência. Para Ele, também, o mais carnal não é o que vai a guerra e mata, mas aquele que fica amaldiçoando invejosamente a benção da coragem concedida ao guerreiro, ainda que também se sirva e usufrua das libertações que ele consegue.
Carnal, no evangelho, não é a mulher que vem da noite escura e ilumina a sala com seu amor, lágrimas e beijos nos pés de Jesus. É o seu opositor cheio de justiça aquele a quem Jesus denuncia como carnal. Assim, para Jesus, o carnal não é, necessariamente, aquele que na busca de amar, equivocou-se, mas aquele que nunca amou por total impossibilidade ou medo de o fazer.
A maior carnalidade é não ser capaz de amar, ainda que equivocadamente; é a total falta de desejo de conhecer o amor.
O ser totalmente carnal é, paradoxalmente, o ser totalmente inafetivo!
O carnal, em Jesus, é o fariseu, o hipócrita, o presunçoso, o arrogante, o seguro de si, o ser certo de suas certezas!
Carnal é aquele que confia nos resultados de suas próprias produções legais, morais e religiosas!
Portanto, de acordo com os evangelhos, o carnal é aquele que não se enxerga, mas vive da presunção de pensar enxergar o próximo!
Além disso, para Jesus, o carnal também era o irmão incapaz de se alegrar com a alegria do Pai pelo retorno de um “outro irmão”—seu igual— que, tendo escolhido correr o risco de visitar “terras distantes”, voltava quebrado e humilhado ao seio da família, sem possuir mais fantasias que não fossem as reais alegrias da verdade.
Ora, esse Irmão Mais Velho, incapaz de entrar na festa, é o carnal, de acordo com Jesus. Afinal, é a festa que o Pai deu para celebrar a volta de Um de Seus Filhos— que estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado! O Filho Zangado, o Irmão Mais Velho, apesar de todos os apelos paternos, não quis entrar e viver com o Pai a alegria de reencontrar o Irmão que, agora, felizmente, estava totalmente des-enganado.
Sim! é o Irmão Invejoso do pecado e do perdão que o Des-Enganado, o Pródigo, recebera do Pai, aquele a quem Jesus vê como sendo o carnal que nunca comeu a carne, de nenhum tipo, nem mesmo a carne de um cabrito, para se alegrar com seus amigos!
Carnal é um ser que se entristece com a manifestação da Graça e do perdão!
Carnal, para Jesus, era o devedor perdoado que não era capaz de perdoar algo infinitamente menor, no seu próximo.
Ou ainda aquele crente que jejuava duas vezes por semana, dava o dízimo de tudo, que orava muitas vezes ao dia, e que agradecia a Deus em alto e bom som a benção de não ser como o pecador que chorava culpado e aflito ao seu lado.
Ora, na mesma oração de ações de Graças, ele ainda louvava a Deus por nem sequer ser parecido com os demais homens que se assemelhavam àquele pária que chorava diante de Deus, sem nem mesmo ousar olhar para cima, ao seu lado. Sim! o auto-justificado, para Jesus, era o carnal!
Carnal também, para Jesus, era ser como os mal-humorados religiosos que encontravam razões exatamente iguais para reclamarem a Deus pela existência de seres tão santa e comportamentalmente díspares quanto João Batista e Jesus.
Ou, seja: aos olhos de Jesus mal-humor crônico contra as expressões da Graça de Deus que não sejam de nosso “gosto”, expressam também a nossa carnalidade.
E pior ainda, para Ele, carnalidade era não temer exercer controle, comercio e juízo no território consagrado a Deus pelos homens!
Para Jesus, mais carnal que a adultera era a assembléia que se reunia, com pedras nas mãos, com o orgástico intuito de apredeja-la.
Além disso, para Ele, pior do que ser carnal, era ser um carnal burro, insensato e desonestamente estúpido. Daí, o administrador infiel ser “elogiado” pela sua sabedoria de tentar fazer o melhor que pudesse com as conseqüências de seus erros irreversíveis.
Todavia, para Jesus, o pior carnal é aquele que não move as mãos, os pés, e não usa os sentidos e o coração para perceber a presença Dele no encontro com o próximo—indo da peste à cadeia; do hospital ao exílio; da inanição à inibição de ser um estrangeiro! Quem não vê na carência do próximo-inaproximável a presença da Graça de Cristo nele oculta, é o supremo carnal da História.
Sim! para Jesus o carnal é aquele que só vive o que pode bancar por si mesmo. Do contrário, prefere se proteger do risco de viver.
O conceito de Paulo sobre o tema da carnalidade não é diferente— e nem poderia ser— daquilo que Jesus ensina ser obra da carne.
Em Jesus, a carne, negativamente falando, é toda produção da arrogância humana, especialmente a presunção do juízo sobre o próximo e sua malfadada tentativa de se auto-justificar diante de Deus.
Isto é apenas para você começar a pensar!
Caio
Escrito em 2003