LENDO A BÍBLIA COM OS OLHOS DA GRAÇA

 


Caio,

Tenho aprendido um pouco sobre o que á a Graça de Deus, pois, por muito tempo, vivi minha vida cristã debaixo do chicote da lei.

Mesmo recitando que não estamos mais debaixo da lei, mas da Graça, o fazia sem entender esse “credo” que todo pastor ensina à ovelha quando ela se candidata ao batismo.

Se não dermos a resposta direitinho, os irmãos votam contra nosso batismo, e, aí, temos que passar mais um tempão tendo as aulinhas de catequese…

Pois bem, a Graça nunca foi algo muito fácil. O que é a Graça? “É favor imerecido”, responde quem aprendeu a lição. Mas como se entende isso, pois, na prática, vivemos querendo merecer o favor de Deus!

Todo crente que conheço, ou quase todo, só tem coragem de se colocar diante de Deus para pedir alguma coisa, se num exame rápido de consciência, não descobrir que está em falta.

“Afinal, com que cara, vou pedir uma bênção a Deus? Ele vai me negar, logicamente, pois ontem eu caí num  pecado escabroso…”

Então, primeiro, procura resolver a questão, confessando a Deus o tal pecado, prometendo que de agora em diante vai procurar andar na linha e, só depois, o camarada se acha apto a pedir. Ora, isto não é Graça!

Acho que o que as igrejas mais ensinam seus fiéis é a se desviarem da Graça e praticarem a lei. Por exemplo: no relatório da Escola Dominical  pergunta-se se o aluno leu a bíblia, estudou a lição, fez o culto doméstico, está com a Bíblia na classe, etc. Quem não fez tudo isso, passa pelo constrangimento de ser julgado pelos outros colegas que fizeram tudo isso.

Certa vez procurei meu pastor para me aconselhar, pois estava sentindo uma frieza muito grande. Não tinha vontade de ir à igreja, de me envolver nas atividades… Uma das coisas que ele me perguntou foi: “Como está sua vida devocional? Tem lido a Bíblia diariamente?” Mas se eu o procurei justamente para me queixar disso!

Ensinaram-me que tenho que ter disciplina, que tenho que me forçar a ler a Bíblia mesmo sem vontade. Isso não é violar a Graça?

Ainda tenho uma enorme dificuldade de viver na Graça. Numa das suas respostas sobre esse assunto, você disse que, para conhecer a Verdade, é preciso antes estar seguro do amor de Deus.

Por que temos tanta dificuldade para ver Deus como nosso paizinho amado, entender que Ele nos ama de verdade e acima de tudo?

Que caminhos a igreja atravessou para tornar seu ensino tão tacanho?

Estou quase pensando que ter nascido praticamente na igreja não é uma coisa da qual me orgulhar, mas lamentar. Creio que é mais fácil para alguém que trilhou outros caminhos na vida e depois se encontrou com Jesus vê-lo como Amor, do que para mim, que fui “criada na igreja”.

Outra coisa: muitos dos meus problemas existenciais vêm de não conhecer Deus como Ele de fato é. Uma coisa que não consigo conciliar é a imagem do Deus do Velho Testamento com a do Deus do Novo Testamento. Fica parecendo que são duas pessoas distintas. A do V. T. é mais parecida com o meu pai terreno: rigoroso, que pune quando erro e de quem tenho que esconder quem sou. Aprendi a temê-lo e usar de todos os artifícios possíveis para me safar, para não ser castigada. No N. T. , vejo Jesus sentir compaixão da mulher adúltera, ter paciência para “prosar” com a samaritana, parar para atender ao pedido de um cego, perdoar Pedro pelos deslizes de negar conhecê-lo. Não parece a mesma pessoa.

Não sei se consegui me expressar bem, fazê-lo entender minhas dúvidas. Se já falou sobre isso aqui no site, só me indique onde que irei procurar para que você não tenha que repetir.

Muito obrigada por existir. Tenho aprendido muito com seus ensinos.

No amor do Pai,
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Resposta:


Minha querida amiga e irmã no Caminho: Graça, Bondade e Paz!


Deus não se tornou amor. Ele é amor. Portanto, Deus sempre foi quem Ele é. Sua manifestação aos homens, todavia, é que “cresceu” aos sentidos humanos no curso das eras, posto que embora houvesse aqueles que o conhecessem como Graça (e o V.T. está cheio de Graça), sendo justificados pela fé (Heb 11), a maioria da humanidade, e também do povo escolhido para levar o “testemunho” (Israel), não poderia discernir a Graça de Deus se não fosse encerrado na certeza do pecado, isto conforme Paulo aos Romanos e a epistola aos Hebreus.

Assim, a lei foi dada para avultar a culpa e o pecado. No entanto, nunca jamais ninguém foi salvo pela Lei, tendo todos sido salvos exclusivamente pela fé, em qualquer tempo ou em qualquer era.

Para mim Davi e os profetas de Israel são o melhor exemplo de gente da Graça em dias da Lei. Jesus mesmo, ao cometer “Suas transgressões” à letra da Lei (conforme se vê nos evangelhos), cita freqüentemente a Davi nas liberdades que teve para servir a Deus conforme a sua consciência em fé; daí ser também um “homem segundo o coração de Deus”.

Nos profetas o grande clamor é para que se receba a Graça de Deus e se ande não pelas formalidades de preceitos e mais preceitos, mandamentos e mais mandamentos, estatutos e mais estatutos—mas sim conforme a Palavra Divina inscrita nos corações, os quais, já não deveriam ter na pedra da lei o seu paradigma, mas sim nas tábuas de carne de um coração ensinável no amor de Deus.

Deus falou de muitos modos e de muitas maneiras, mas, para sempre, falou por meio do Filho. Portanto, segundo várias cartas de Paulo e segundo a epistola aos Hebreus, todas aquelas coisas anteriores (a Lei e seus cerimoniais), eram apenas uma pedagogia simbólica, e que teve o seu lugar na infância da formação da consciência, tendo caído em obsolescência quando tudo o que antes era sombra e arquétipo veio a ganhar concreção final em Jesus, o qual é Deus encarnado, e em Quem habita corporalmente toda a plenitude da divindade.

Assim, no V.T. temos um processo de uma longa pedagogia divina, e que muitas vezes está carregada de coisas que ferem os nossos “sentidos atuais”, mas que eram normais para o homem antigo. Desse modo, o escândalo é nosso, mas nunca foi deles. E é assim porque a revelação de Deus aos homens acontece conforme o estágio de percepção no qual eles se encontram, sendo que, agora, Deus diz a todo homem e em todo lugar, que Ele já se reconciliou com o mundo, por meio de um Varão ao qual Ele creditou diante de todos, ressuscitando-o dentre os mortos: Jesus.

Quando leio a Bíblia faço-o ao contrário do que normalmente as pessoas fazem. Ou seja: leio conforme Jesus, que mostrava o que a Seu respeito constava em todas as Escrituras. Ora, com isso não digo que procuro profecias que “conformem o messiado” de Jesus, mas sim que leio buscando o espírito do Evangelho na Velha Aliança, a qual, embora agora “tenha sido removida” (Hebreus), carrega em si a semente imutável do amor e da justiça divinos.

Desse modo, leio a Bíblia a partir de Jesus, posto que Nele a Palavra se encarnou, se explicou, se auto-interpretou e fez sua própria aplicação à vida como um todo. Por isso, tudo aquilo que eu leio na Escritura e que não combina com o espírito do Evangelho, sem hesitação, à semelhança de Paulo e do escritor de Hebreus, eu considero como tendo caído em sua vigência, posto que está claramente afirmado que eram apenas “sombra de coisas que haviam de vir”.

Na realidade no V.T. Deus não estava dizendo sobretudo quem Ele era, mas sim quem nós somos. A revelação de Deus no período em que a Escritura foi composta deu-se através de um longo processo, e, quem não entende isso não compreende nada.

De fato, como disse Paulo, “tudo quanto outrora foi escrito, por nossa causa foi escrito, para que pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança”.

A leitura bíblica é fundamental quando ela é feita com esses olhos, do contrário, ela se torna algo supersticioso e mecânico. Aliás, o fato da leitura bíblica ter sido considerada “meio de graça”—juntamente com a eucaristia e o batismo—fez com que, para muitos, o livro-Bíblia fosse considerado um ente vivo e mágico, como se carregá-lo e lê-lo, em si mesmos, carregassem uma benção inerente. Ora, na realidade não é assim. Isto porque as Escrituras podem ser examinadas, com toda acuidade e detalhamento, e, ainda assim, nada acontecer no coração de quem lê, posto que a Bíblia só se torna Palavra quando a leitura é feita a partir de Cristo, e quando o coração acompanha a revelação com fé.

Vale lembrar que os “antigos”—incluindo nisto os próprios apóstolos e uma quantidade enorme de “pais da igreja”—não tinham o “Livro” disponível para a “leitura devocional”, posto que não havia nem mesmo o livro disponível para que se fizesse tal “leitura inspirada”.

Do ponto de vista do acesso à Bíblia, nós, sem a menor dúvida, temos muito mais acesso a ela que aqueles que nos precederam antes de haver “impressão do texto bíblico”. No entanto, paradoxalmente, as grandes percepções da Palavra aconteceram antes de haver essa facilidade física de acesso ao livro. E na minha percepção isso aconteceu também porque não tendo acesso à materialidade do Livro, as pessoas se entregavam de modo mais místico e intuitivo à verdade da Palavra.

O que aconteceu é que se instituiu o Livro como algo quase mágico, e, assim, a leitura bíblica perdeu a sua força intuitiva e simples, ficando os leitores presos à culpa de abrir o livro e ler—e, muitas vezes, seguindo até mesmo um esquema de leitura—, como se não fazendo isso Deus não falasse com a pessoa.

Nesse processo de objetivação da relação com o Livro, foram desenvolvidos muitos métodos de “compreensão” da Escritura, os quais, nada mais são do que “condicionantes” e que impedem a liberdade interior para a meditação, a ruminação e a gestação da Palavra na alma.

Ora, o simples fato de se condicionar a Graça a um Livro já é algo pagão e pequeno, e que embota os demais sentidos do ser para manter-se aberto, conferindo coisas espirituais com coisas espirituais, e, também, crendo que o conteúdo real da Palavra que nos habita, está sempre disponível para ser excitado por toda e qualquer emulação que venha do Espírito da vida, da natureza, e por tudo quanto possa significar impressão divina no nosso ser.

A Graça é puro escândalo e gera insegurança para quem não anda pela fé.

Para se andar na Graça tem-se confiar. Sem confiança, a alma acaba por tentar se agarrar a alguma forma de materialidade, seja a Bíblia, como livro; seja a igreja, como lugar de Deus; seja a Lei, como garantia de se estar “agradando a Deus” por méritos próprios.

Na realidade a Graça é chocante, pois, apenas nos manda confiar no amor de Deus, e, por tal confiança, viver de modo pacificado, sabendo que tudo está feito em nosso favor.

Ora, quando essa confiança se estabelece pode-se ter “um tempo devocional”, mas, na realidade, o tempo todo vira devoção.

Deixa-se de ter “encontros marcados com Deus” e passasse a andar com Deus, o tempo todo, e na tranqüilidade que nasce da confiança na fidelidade de Deus.

A igreja instituída e seus líderes têm muita dificuldade nisso, pois, na Graça, todos estão livres, e os mecanismos de dependência e controle acabam. E a igreja e seus líderes não gostam disso, pois, assim, acham que perdem o poder de controlar as pessoas.

Uma vez que você sabe disso, cabe a você ler a Palavra na Bíblia e ler a Bíblia na Palavra. E mais: cabe a você manter-se completamente aberta, a fim de discernir a revelação de Deus também em todas as coisas.

Aqui no site há vários textos e respostas a cartas nas quais eu explico como vejo a leitura bíblica, e como olho para tudo a partir do espírito do Evangelho, expresso em Jesus, em Quem a Palavra não apenas se encarnou, mas se fez explicar como espírito para cada um de nós.

Prossiga na jornada. Ela só está começando.


Receba meu carinho!


Nele, em Quem está todo o nosso prazer,

 

Caio