MINHA TOGA, A MENINA, A CATEDRAL E A PALAVRA
No dia 18 de abril de 1998 eu tive um sonho. Foi tão forte que levantei na mesma hora e o gravei num pequeno gravador de bolso.
Era longo. Muito longo. Tão longo que hoje, aqui, não o narrarei na íntegra.
Eis o sonho.
Eu passava ao lado da Catedral Presbiteriana do Rio. Desde 1981 quando meu amigo Rev. Guilhermino assumiu o pastoreio daquela igreja, eu sempre pregava lá. Foram centenas e pregações! Fiz amigos ali. Também gerei pessoas em Cristo. Durante duas décadas minha vida e a da Catedral estiveram intimamente ligadas. Agora, no meu sonho, eu estava passando ao lado…
Havia hinos que ecoavam… Uma menina moça gritava para mim. Venha aqui, pregue a Palavra. Você está atrasado. Todos estão lá dentro esperando!—bradava ela com voz cheia de autoridade.
Eu a atendi. Fui direto para o vestíbulo pastoral e procurei a minha toga, que a Catedral fizera para mim. Ninguém achava a minha toga. A Ondina, cuja vida se confunde com a daquela igreja, me disse: Reverendo, venha comigo…
Segui-a. Andamos para os fundos do terreno da igreja, que, agora, no sonho, era uma grande floresta bosqueada. Andamos, andamos, andamos… Chegamos a uma casa de madeira, como essas de bruxa no imaginário infantil. Abrimos a porta… Uma mulher com cabelos desgrenhados veio até nós. Perguntei por minha toga. Ela deu uma gargalhada e apontou para uns ganchos, que estavam pendurados numa madeira, uma espécie de viga.
Minha toga estava pendurada como se fosse um pedaço de carne num açougue.
Fiquei feliz. Eu a havia achado. Estendi a mão e a abri. Minha carcaça estava grudada na toga. Tinham arrancado a toga com meu corpo junto.
Levei um susto enorme.A mulher da cabana de bruxa dava gargalhadas…
Ouvi a voz da menina moça outra vez. Deixe essa toga. As pessoas não estão procurando a toga. Elas querem a Palavra. Venha e pregue—gritava ela.
Fiz o caminho de volta. Quando ia entrando na Catedral, pelos fundos, veio alguém. Era meu amigo Marcelo Carvalhal, que durante alguns anos fora ali pastor auxiliar.
Caio, você está sem toga. Não precisa entrar sem toga. Pregue aqui de fora—disse ele.
Então, me colocou num barquinho—a essa altura os fundos da Catedral já era um lago—, e me levou para o outro lado do lago, me assentou sobre uns Registros de Água, com suas enormes torneiras, e me disse: Tome esse microfone de lapela. Pregue daqui. Sua voz vai chegar lá, e ninguém verá que você está sem a toga!
Olhei para aquele microfone, coloquei-o no peito, e fiquei pensando…
Pare com isso. Você não precisa de toga. O povo quer a Palavra. Daí não. É muito longe. Você tem que ficar próximo das pessoas, não distante. Venha aqui e pregue!—decretou a menina.
Voltei mais uma vez…
Havia centenas de jovens nos fundos da Catedral.
A menina moça me disse: Você está vendo? Eles querem ouvir a Palavra. É uma nova geração!
Tentei entrar. Umas mulheres americanas estavam dentro do vestíbulo pastoral. Aguardavam para falar comigo. Iniciaram uma conversa em inglês.
Uma delas parecia querer mais do que conversar. Me parecia excessivamente insinuante. Eu tentava me desvencilhar. Elas me seguravam à pretexto dos assuntos mais imbecis.
Pare com isso. Você vive perdendo tempo. Entre e pregue!—advertiu-me, mais uma vez, a menina moça.
Eu enfiei a cabeça pela portinha que dava do vestíbulo para o púlpito. Meu amigo reverendo Guilhermino estava lá, e com ele um monte de outros pastores.
Entre meu irmão. Entre e pregue—disse ele.
Estou sem toga!—disse eu.
Então olhei e vi que ele, e todos os outros, também estavam sem toga.
Eu vestia uma roupa marrom.
Nós também estamos sem toga. Entre, suba, e pregue!—disse Guilhermino enfaticamente.
Mas meu irmão, eles não querem me ouvir. Além do mais, não trouxe a minha Bíblia—declarei como quem se escusava.
Meu amigo, ali sobre o púlpito há uma grande Bíblia. Veja. Todos os esboços de mensagens que você pregou aqui estão escritos nela. Nada se perdeu—disse ele.
Eu entrava e olhava para o povo.
Subitamente o auditório se transformara num banquete medieval. Centenas de pessoas estavam assentadas em longas e intermináveis meses, banqueteando-se, comendo à moda medieval—ou seja: com as próprias mãos—, e pareciam não dar a menor importância para o que alguém, ali, naquele dia, pudesse desejar dizer.
Ameacei me retirar.
Você tem que acabar com isso. Você tem que falar. Não importa se querem ou não ouvir. Pregue. Você já perdeu muito tempo—exortava a menina moça.
Andei na direção do púlpito. O caminho parecia interminavelmente longo. A grande e velha Bíblia estava aberta. Olhei e constatei que centenas de mensagens minhas estavam ali anotadas. Olhei para a menina moça e disse: Vou falar 10 minutos. Se eles prestarem atenção, eu continuo; se não, eu paro.
Não! Você teve todas as atenções até hoje. Agora você vai pregar mesmo que não lhe dêem atenção. Pregue a Palavra!—disse ela de modo inegociável.
Voltei-me para o reverendo Guilhermino, e vi que ele e os demais me olhavam como quem dizia: O que você está esperando?
Então eu disse: Meu irmão, não vou mais usar esboços. Vou falar direto do coração!
Então fale!—bradou a menina.
Comecei a falar.
Falei de minha alma, de meu coração, do que a Palavra significava para mim. E de como ela estava instalada dentro de mim. O ambiente mudou num abrir e fechar de olhos. Todos estavam atentos. Ninguém prestava mais atenção à nada que pudesse significar distração. Uma voz de soberania divina encheu o lugar.
Eu acordei…
Estava suado e tremulo. Peguei o gravador e narrei o sonho.
Não fazia sentido para mim naquele momento, mas eu sabia que um dia ele faria total sentido. Os detalhes do sonho são muitos. Serviria para um livro, junto com uma infinidade de outros sonhos simbólicos e proféticos que tive entre dezembro de 97 e abril de 98.
No dia 28 de abril de 1998 comuniquei a minha esposa que estávamos nos separando. O assunto não era novo para nós. Já havíamos conversado várias vezes sobre o tema. Mas naquele diz tratei dele como uma decisão.
A tal decisão, como já disse, veio acompanhada de muitos, muitos sonhos; e de dias e dias de solidão, reflexão e avaliação das conseqüências…
Eu ficava horas e horas assentado à beira de um lago pensando no assunto. O resto foi calamidade, dor, angustia, perdas, sofrimentos, contorções de morte, laços malignos, amigos em fuga, políticos insistindo e pedindo ajuda para algo que eu, em sã consciência, jamais faria… Eles sabem o que me pediram.
Uma dessas pessoas sabe que me ligava todos os dias, chorava, e pedia ajuda. Só você pode nos salvar nessa campanha—dizia ela, que até então fora amiga; pelo menos eu a tratava assim.
Fui…
O resto foi dor, depressão, desistência da vida, vergonha, anestesiamento, fuga, medo, tristeza indizível…
Então, veio o dilúvio!
Repórteres acampados à minha porta. Meu nome todos os dias nos jornais, não mais pelas belas e boas razões de antes; mas pelas razões que eu abominava. O resto foi utilização de minha vida como se eu fora o boi das piranhas, a bola da vez, o ser indicado para pela hipocrisia da “nação” evangélica para ser seu “bode expiatório”: levava a culpa, mas não tirava o pecado—, enquanto os verdadeiros interessados escapavam “ilesos”, porém, para sempre lesados na alma, enquanto não se enxergarem. O resto, Deus sabe…
Há cerca de dois anos o reverendo Guilhermino, num almoço, me disse que minha toga havia desaparecido do vestíbulo da Catedral.
Estranho…
Haviam procurado exaustivamente, mas ninguém sabia o paradeiro dela.
Dia 31 de agosto de 2003, eu estava na Catedral para pregar. Na quinta-feira eu pregara lá, para um grupo lindo de jovens, numa noite cheia de chuva e graça. Sou membro daquela igreja tão amiga, e de portas tão abertas. Prego. Participo de encontros íntimos com meus amigos pastores que lá servem. Dou aula em classes conjuntas, para toda a igreja,e uma vez por mês, aos domingos, prego lá.
Naquele dia, porém, foi diferente. Era a primeira vez desde julho de 1998 que eu pregava no culto das 10:15, onde eu costumava sempre pregar.
Cheguei e vi que todos os pastores estavam sem toga. O reverendo Guilhermino era o único togado, e trazia sobre a cabeça um chapéu de colação de grau, símbolo de seu recém alcançado título de doutor, por um Seminário nos Estados Unidos. Oramos no vestíbulo pastoral, e entramos. Ele foi direto ao assunto. Explicou que estava paramentado de modo diferente a fim de agradecer aos irmãos o apoio que lhe haviam dado durante o período em que teve de dedicar-se ao curso que fizera.
Depois, solenemente, tirou a sua própria toga, e disse:
Hoje, o reverendo Caio Fábio, nosso irmão, vai trazer a Palavra. E, todos nós, os pastores da igreja, decidimos ficar sem as togas, e ouví-lo sem os trajes de sempre.
Há anos que todos os que pregam na Catedral do Rio o fazem togados.
Quando ele disse isto olhei para mim mesmo. Eu estava vestindo morrom…
Lembrei que no meu sonho era aquela a cor que eu usava naquele dia em que, para pregar, eu procurava a minha toga branca.
A emoção me subiu ao coração. O sonho inteiro me passou pela alma.
Lá estava eu… Mais de cinco anos depois… O sonho se cumpria…
Preguei em Gálatas 5: 1-5. Foi para liberdade que Cristo nos libertou.
Eu mesmo ouvi os ecos da Voz Maior. Saí dali como quem anda pelos mundos do espírito. E, à semelhança daquele sonho, muitos outros estão em franco processo de cumprimento e realização.
Enquanto isto, eu guardo as coisas no coração; e apenas vejo os caminhos de Deus; e o modo magnífico como Ele, soberanamente, realiza a Sua própria vontade. Certamente que Aquele que falou, o cumprirá.
Enquanto isto, eu ando em esperança.
Ele não tem conselheiros!
É Deus livre e soberano!
Eu?
Bem, eu sou um filho que Ele ama, e por razões que somente a Ele pertencem!
Caio
Escrito em 2003