O CASAMENTO COMO APOCALÍPSE

Não há dúvida de que Paulo e os demais apóstolos, sadiamente, esperavam que Jesus voltasse ainda em seus dias.
Não compreender que tal era a esperança deles, e nem tampouco entender que viver com tal expectação é parte da saúde espiritual, tem levado os cristãos a entenderem muito mal os escritos dos apóstolos, incluindo os de nosso irmão Paulo.
O raciocínio cristão é o seguinte:

Primeiro raciocínio cristão:

Se eles eram inspirados, então não poderiam estar tão enganados acerca da volta do Senhor!
Portanto, eles deveriam saber que não era logo que Cristo voltaria.
Não entendem, todavia, que seus escritos foram inspirados dentro de dados circunstanciais imediatos, e que são inspirados em seus princípios imutáveis, mas eles não tinham bola de cristal.
Os apóstolos não eram inspirados o dia todo. Eles disseram coisas inspiradas, e que foram preservadas. E graças a Deus não se preservou as demais coisas que equivocadamente pensaram e entenderam, como acontece muitas vezes com qualquer outro ser humano.

Segundo raciocínio cristão:

Eles diziam que Cristo “estava às portas” porque precisavam manter os fiéis firmes na esperança, mas eles mesmos deviam saber que ainda haveria muita coisa acontecendo.

De fato há aqueles que sabem e crêem que os apóstolos tiveram que viver a fé como qualquer outro cristão, e que sua inspiração não dava a eles certeza de tempos e épocas, mas apenas a certeza de como seriam tais tempos e épocas. Mas ainda assim, esses que sabem disso, por total medo de serem julgados incrédulos ou descrentes, não concluem conforme sabem, nem interpretam a Palavra com isenção.
Eu, todavia, digo: os apóstolos tiveram que tatear e andar pela fé como eu e você!

A questão é que não discernir o impedimento da visão deles quanto a volta do Senhor—e muitas outras questões—, faz total diferença na compreensão de certos textos do Novo Testamento.

Um deles, com certeza, é I Coríntios 7, acerca do casamento, e que segue transcrito.
Leia com atenção:


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Ora, quanto às coisas de que me escrevestes, bom seria que o homem não tocasse em mulher; mas, por causa da promiscuidade, tenha cada homem sua própria mulher e cada mulher seu próprio marido.
O marido dê à mulher o que é próprio no casamento, e do mesmo modo a mulher ao marido.
A mulher não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim o seu marido; e também da mesma sorte o marido não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim a mulher.
Não vos negueis sexualmente um ao outro, senão de comum acordo, por algum tempo, a fim de vos dedicardes à oração e depois vos ajuntardes outra vez, para que Satanás não vos tente pela vossa incontinência.
Digo isto, porém, como que por permissão de opinar e não por mandamento. Contudo queria que todos os homens fossem como eu mesmo sou; mas cada um tem de Deus o seu próprio dom, um deste modo, e outro daquele.
Digo, porém, aos solteiros e às viúvas, que lhes é bom se ficarem como eu, sem compromisso de casamento. Mas, se não podem conter-se, casem-se. Porque é melhor casar do que abrasar-se.
Todavia, aos casados, ordeno não eu, mas o Senhor, que a mulher não se aparte do marido; se, porém, se apartar, que fique sem casar, ou se reconcilie com o marido; e que o marido não deixe a mulher.
Mas aos outros digo eu, não o Senhor: Se algum irmão tem mulher incrédula, e ela consente em habitar com ele, não se separe dela. E se alguma mulher tem marido incrédulo, e ele consente em habitar com ela, não se separe dele. Porque o marido incrédulo é santificado pela mulher, e a mulher incrédula é santificada pelo marido crente; de outro modo, os vossos filhos seriam imundos; mas agora são santos.
Mas, se o incrédulo se apartar, aparte-se; porque neste caso o irmão, ou a irmã, não está sujeito à servidão; pois Deus nos chamou em paz.
Pois, como sabes tu, ó mulher, se salvarás teu marido? ou, como sabes tu, ó marido, se salvarás tua mulher?
Somente ande cada um como o Senhor lhe repartiu, cada um como Deus o chamou. E é isso o que ordeno em todas as igrejas.
Foi chamado alguém, estando circuncidado? permaneça assim. Foi alguém chamado na incircuncisão? não se circuncide.
A circuncisão nada é, e também a incircuncisão nada é, mas sim a obediência à Palavra de Deus.
Cada um fique no estado em que foi chamado. Foste chamado sendo escravo? não te preocupes com isto; mas se ainda podes tornar-te livre, aproveita a oportunidade. Pois aquele que foi chamado no Senhor, mesmo sendo escravo, é um liberto do Senhor; e assim também o que foi chamado sendo livre, escravo é de Cristo.
Por preço fostes comprados; mas vos façais escravos de homens.
Irmãos, cada um fique diante de Deus no estado em que foi chamado.
Ora, quanto às virgens, não tenho mandamento do Senhor; dou, porém, o meu parecer, como quem tem alcançado misericórdia do Senhor para ser fiel.
Acho, pois, que é bom, por causa da instante necessidade, que a pessoa fique como está.
Estás ligado a mulher? não procures separação. Estás livre de mulher? não procures casamento.
Mas, se te casares, não pecaste; e, se a virgem se casar, não pecou. Todavia estes padecerão tribulação na carne e eu quisera poupar-vos.
Isto, porém, vos digo, irmãos, que o tempo se abrevia; pelo que, doravante, os que têm mulher sejam como se não a tivessem; os que choram, como se não chorassem; os que folgam, como se não folgassem; os que compram, como se não possuíssem; e os que usam deste mundo, como se dele não usassem em absoluto, porque a aparência deste mundo passa.
Pois quero que estejais livres de cuidado. Quem não é casado cuida das coisas do Senhor, em como há de agradar ao Senhor, mas quem é casado cuida das coisas do mundo, em como há de agradar a sua mulher,
e está dividido. A mulher não casada e a virgem cuidam das coisas do Senhor para serem santas, tanto no corpo como no espírito; a casada, porém, cuida das coisas do mundo, em como há de agradar ao marido.
E digo isto para proveito vosso; não para vos enredar, mas para o que é decente, e a fim de poderdes dedicar-vos ao Senhor sem distração alguma.
Mas, se alguém julgar que lhe é desairoso conservar solteira a sua filha donzela, se ela estiver passando da idade de se casar, e se for necessário, faça o que quiser; não peca; casem-se.
Todavia aquele que está firme em seu coração, não tendo necessidade, mas tendo domínio sobre a sua própria vontade, se resolver no seu coração guardar virgem sua filha, fará bem.
De modo que aquele que dá em casamento a sua filha donzela, faz bem; mas o que não a der, fará melhor.
A mulher está ligada enquanto o marido vive; mas se falecer o marido, fica livre para casar com quem quiser, contanto que seja no Senhor.
Será, porém, mais feliz se permanecer como está, segundo o meu parecer, e eu penso que também tenho o Espírito de Deus.


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Ora, a ênfase de Paulo recai claramente sobre os “tempos”.
Ele tinha uma visão apocalíptica dos dias por vir e não esconde isto em momento algum.
Veja o sentindo de “não-continuidade histórica” que aparece nas falas do apóstolo:

1. “Bom seria que o homem não tocasse em mulher.”

Certamente esse nunca seria um princípio sadio, desde o Gênesis, se levássemos em consideração a continuidade da vida na terra!

2. “Queria que todos os homens fossem como eu mesmo sou.”

É impossível pensar na masculinidade de todos os cristãos tendo Paulo como modelo. Exceto se o que ele diz estivesse condicionado ao “tempo” e às “circunstancias” daquela hora.

3. “Acho, pois, que é bom, por causa da instante necessidade, que a pessoa fique como está. Estás ligado a mulher? não procures separação. Estás livre de mulher? não procures casamento.”

Outra vez, todos nós sabemos, não é assim que as coisas são na normalidade da vida e na linearidade da história. E também sabemos que não é bom que o homem-mulher esteja só. Exceto se esse for um “dom”; ou seja: um chamado.


4. “Os casados padecerão tribulação na carne e eu quisera poupar-vos. Isto, porém, vos digo, irmãos, que o tempo se abrevia; pelo que, doravante, os que têm mulher sejam como se não a tivessem; os que choram, como se não chorassem; os que folgam, como se não folgassem; os que compram, como se não possuíssem; e os que usam deste mundo, como se dele não usassem em absoluto, porque a aparência deste mundo passa.”

A circunstancialidade da fala apostólica está mais que evidente no próprio texto.

6. “Digo estas coisas para poderdes dedicar-vos ao Senhor sem distração alguma.”

7. “Quem se casa faz bem; mas quem não se casa, faz melhor.”

Se os conselhos “circunstanciais” de Paulo tivessem sido obedecidos como mandamentos perenes, o ocidente não seria como é; a história da igreja não teria acontecido como continuidade; o sentido de procriação como desenvolvimento e perpetuação histórica teriam acabado; e somente os “consagrados” estariam agradando a Deus em plenitude.

Foi a aplicação desses princípios circunstancias de Paulo, aquilo que gerou o espírito celibatário dos clérigos cristãos.

Paulo, no entanto, estava sendo apenas próprio e sensato levando em consideração o cenário que ele contemplava.

E mais: sempre que as circunstancias forem negativas e opressivas, a sensatez do apóstolo precisa ser levada em consideração.

O que prevalece como princípio permanente neste texto—e que independe das circunstancias históricas—é o seguinte:

1. Se a circunstancia da necessidade física e emocional da conjugalidade estiverem presentes, o casamento é o caminho, não a promiscuidade. O famoso “é melhor casar-se que viver abrasado” tem que ser compreendido no seguinte contexto: “Dadas as circunstancias, o casamento é um peso; mas se alguém não consegue se conter e acaba mergulhando na promiscuidade; então, que se case, pois é melhor casar que viver abrasado”.

2. Ninguém deve ser estimulado a buscar vínculos e nem a fugir deles. Quem foi chamado estando de um certo modo, permaneça como foi “chamado”. Mas se a “circunstancia” é ruim, que busque algo melhor para a sua vida. É um direito buscar sair da escravidão—de qualquer tipo de escravidão! Mas sendo possível, que ninguém se obrigue ao circunstancialmente é possível de ser abandonado; e nem se amargure quando não for esse o caso.

3. A tentação para os que já são mal casados antes de se converterem é, após a conversão—contemplando novos cenários— pensar em deixar seus cônjuges anteriores e reconstituir novos vínculos, só que agora com cristãos. Paulo diz que tal circunstancia só pode prevalecer se o cônjuge descrente desejar também se separar; ou ainda se não houver “paz” entre ambos; ou seja: se houver espírito de escravidão. Em havendo “opressão”, ele diz que a porta está aberta, visto que Deus nos chamou à paz.

4. A mulher está ligada ao cônjuge enquanto ele vive; mas se falecer o marido, fica livre para casar com quem quiser, conquanto que seja no Senhor. Com isto, Paulo não afasta a possibilidade de que pessoas que se separaram possam casar-se outra vez. Afinal, não foi desse modo que Jesus tratou a alguns “quebrados” que Ele encontrou pelo caminho—incluindo a Samaritana. O que Paulo está dizendo é que a pendência legal de uma “mulher”—note a circunstancialidade da afirmação, visto que mulheres e homens não tinham direitos iguais naqueles dias—, seria naturalmente resolvida pela viuvez; ou pelo abandono, conforme afirmação anterior dele. Um novo casamento seria possível, mas somente no Senhor.

E por que “somente no Senhor”?

Primeiro porque já vimos que Paulo queria poupá-los de “tribulações”. Ou seja: ele estava preocupado em manter os cristãos livres para enfrentarem as dificuldades dos últimos dias.

Segundo porque ele desejava que numa sociedade machista e masculina, o Caminho não fosse acusado de libertinagem, como se a fé gerasse uma confraria de trocas de casais e de excessivas liberdades às mulheres.

Portanto, a morte do cônjuge, o abandono ou as condições de opressão insustentável eram, para ele, as razões que justificariam a separação aos olhos de todos.

A prova da total circunstancialidade da afirmação do apóstolo está no conselho que ele dá ao “pai da virgem”. O que ele aconselha tornou-se completamente impossível de ser praticado faz muito tempo.

Literalmente ele diz o seguinte:

“Mas, se alguém julgar que lhe é desairoso conservar solteira a sua filha virgem, se ela estiver passando da idade de se casar, e se for necessário, faça o que quiser; não peca; case-se. Todavia aquele que está firme em seu coração, não tendo necessidade, mas tendo domínio sobre a sua própria vontade, se resolver no seu coração guardar virgem sua filha, fará bem. De modo que aquele que dá em casamento a sua filha virgem, faz bem; mas o que não a der, fará melhor.”


Qual dos pais que você conhece teria hoje tal poder?

Eu não conheço nenhum!

Portanto, o princípio prevalece como uma decisão pessoal—no caso da virgem ou de qualquer pessoa—, mas não mais como algo a ser demandado do pai como um dever e um mandamento. Simplesmente ninguém mais tem esse poder, pois, de fato, os tempos mudaram.

Aqui há a clara demonstração de como os tempos mudam, e os princípios da Palavra precisam ser aplicados aos novos contextos.

Não admitir isto nos colocaria a todos nós em total desacordo com a Escritura, e não apenas aqueles entre nós que se casaram outra vez, mas também aqueles que abriram mão de poder decidir com quem casar a sua filha; ou se a mantêm virgem ou não.

Para mim, o espírito da Palavra é o que prevalece. E prevalece da seguinte maneira:

1. Sexo é coisa séria e não deve ser tratado levianamente.

2. Casamento é algo sério, e deve ser preservado com todas as forças; exceto se se tornar impossível por quaisquer das “razões” indicadas anteriormente, e também pela mais clássica de todas: a traição.

3. O casamento deve ser buscado no Senhor, entre aqueles que confessam o Nome. Daí Paulo dizer que quem já tem uma situação “feita” não deve deixá-la apenas por essa inadequação ao ideal; mas se houver oportunidade de um novo casamento, que, então, ele seja feito visando maior unidade, inclusive de fé.

A razão pela qual estou escrevendo estas coisas é simples:

Vejo as pessoas se angustiando com esta passagem da Escritura e sofrendo porque nem sempre as “circunstancias da vida” lhes permitiram estar em “acordo histórico” com a proposição do texto.

O que tenho a dizer é que se formos literais—e não levarmos em consideração o contexto—, a própria fixação evangélica na necessidade do casamento já é, em si, uma violação ao espírito “deste texto”—I Coríntios 7—, que não dá essa importância toda à conjugalidade. Paulo não tinha pessoalmente essa fixação e parece achar que tais vínculos atrapalham a quem quer ter liberdade para servir a Deus. Especialmente nas circunstancias que ele divisava.

Aliás, Paulo diz: Quem casar não peca, quem não casar, faz melhor!

Portanto, a manter-se a “fixação” na letra do que está escrito, deveríamos ainda aprender a lidar com I Coríntios 11: 1-16, no que se refere ao uso do véu.

Ora, para a “questão do véu” os evangélicos usaram o critério cultural e do bem senso a fim de resolver a questão.

Ninguém parece se afligir com o princípio que ali está em operação.

E por que?

Porque o modo como o “véu”—autoridade—se manifesta hoje, já não é através de um pano, mas mediante a conduta—como sempre foi; afinal o “véu” era apenas uma simbolização.

Com isto estou dizendo que enquanto os cristãos não souberem diferenciar o Princípio da Palavra dos contextos históricos dentro dos quais aquela Palavra foi ensinada, cairão sempre em contradição, visto que não conseguirão impedir as mudanças dos tempos e modos; e nem tampouco conseguirão ter paz para viver “conforme cada um foi chamado”. E isto não tem a ver apenas com as circunstancias da vida pessoal de cada um, mas também com as “circunstancias dos tempos” nos quais cada um de nós está sendo chamado para ser discípulo de Cristo na História.

Portanto, para mim, se há um princípio prevalente em todo o texto de I Coríntios 7, é o do Bom Senso. É a capacidade de lidar com as circunstancias, sem desespero, facilitando a vida, não buscando sarna para si coçar, e, sobretudo, entendendo sua própria vocação em Cristo—respeitando as circunstancias do chamado; e não se deixando escravizar pelo “dado histórico”, pois, em havendo chance de libertação, cada um deve buscar a sua própria saída para uma vida de mais paz!

Deus vos tem chamado à Paz!


Caio