Já houve tempo em que o que Paulo disse em I Coríntios 7 não era chocante. Salvo as afirmações de que o corpo do marido pertence à mulher e o da mulher ao marido; e, também, a porta aberta para a separação conjugal, pois, o que valia não era a obrigatoriedade conjugal, mas sim o consenso acerca da conjugalidade—as demais afirmações soam estranhas aos ouvidos modernos e pós-modernos.
Essa coisa do pai decidir se casa ou não a filha; ou se a mantém virgem, sendo essa uma decisão dele, é chocante aos nossos sentidos. Também a coisa de que é melhor casar do que viver abrasado soa como um conselho de natureza de alívio biológico apenas. Além disso, tem a coisa dele achar o estado celibatário melhor do que qualquer outro, o qual chega a nós de modo esquisito.
No entanto, não podemos esquecer duas coisas pelo menos, quando se trata de tais afirmações de Paulo. A primeira é que tanto no judaísmo como entre os gregos, os casamentos eram naturalmente arranjados pelos pais. No judaísmo mediante vínculos e promessas feitas entre os pais e um noivo mais velho, ou mesmo com a família deste, sempre levando em consideração os laços de etnia e crença religiosa. Já no mundo grego, além de tais possibilidades idênticas, o que prevalecia era o “arranjo” baseado no dote ou nos privilégios. Era obrigação de um pai tentar casar a filha de um modo socialmente “ascendente”.
A segunda coisa a se saber é que os judeus não lidavam naqueles dias com o amor romântico conforme se lê no livro de Cantares de Salomão. O amor romântico estava em baixa. Os gregos, por exemplo, achavam a “paixão” um estado de loucura e surto, a serem evitados a qualquer custo por um homem sábio e prudente.
Assim, o olhar das pessoas para o casamento não carregava nada do nosso modo de olhar a união entre duas pessoas.
E os sofrimentos que poderiam eventualmente existir quanto ao não gosto de uma virgem por seu noivo, eram em muito, menores do que os de uma mulher “moderna” que casa com toda liberdade com um desconhecido, o qual, de súbito, entrou na vida dela, sem que ela saiba nada acerca dele, de sua família, etc…
O nosso olhar livre acerca do romance também inventou esse estado límbico, ao qual chamamos de namoro, no qual dois jovens têm permissão para se testarem e se provarem para ver se gostam do que servem um ao outro. Mas como tais “banquetes” são quase sempre eventos de gozo e gala, muitas vezes, quando os dois vão morar juntos, aparecem os seres reais deles, sem disfarces, e com a legião de bichos que cada um trás consigo, quais gambiarras feitas de pedaços de espíritos em nós penetrados, e que de nós escorrem como trapos psicológicos… resultado de nossas muitas e muitas tentativas frustradas.
Assim, mesmo sabendo que o mundo mudou e que ninguém hoje sente e pensa mais como Paulo, e que soa a heresia contra a alma um casamento decidido pelos pais, todavia, quando a cultura é assim, e quando os casamentos são promovidos entre famílias amigas, e os “noivos” crescem juntos, na maioria das vezes crescem se gostando, e, tais casamentos, raramente acabam.
Tenho amigos indianos que se casaram assim, e vivem felizes há décadas. Eles é que nos olham e acham tudo o que fazemos muito estranho, e também se assustam com nossa coragem de casar com estranhos e desconhecidos, correndo o risco de nos unirmos a um louco ou louca.
Aqui também afirmo que a alma muda com os tempos e que os tempos mudam com a alma.
Por isto é tão difícil para um olhar que se vê como “exclusivo”, enxergar os valores e percepções que nascem do olhar dos diferentes.
Hoje os árabes e os indianos—e quase todas as tribos indígenas—são os únicos que praticam tais modos de unir homem e mulher.
É verdade que especialmente no mundo árabe há muita arbitrariedade e abuso a esse respeito, e muita opressão, fruto de certas visões fanáticas do islamismo.
Para mim isso também serve de exemplo acerca do abismo que separa a Terra de Bush da Terra de Bin. Nesse caso a comparação é ruim. Todavia, prova meu ponto, de que o olhar humano sobre a mesma coisa, pode ser inteiramente diferente. E isto inclui também o modo árabe de ver a “maravilha ocidental” da democracia. Para eles, democracia é como não decidir mais com quem se vai casar a filha.
Caio