O POVO DO BODE E O POVO DO CORDEIRO

O Dia da Expiação entre os israelitas era altamente significativo. Era o dia santo mais importante do ano judaico. A Bíblia, em Levítico, descreve como decorria a cerimônia do dia:


Da congregação dos filhos de Israel tomará dois bodes, para oferta pelo pecado, e um carneiro, para holocausto. Arão trará o novilho da sua oferta pelo pecado e fará expiação por si e pela sua casa. Também tomará ambos os bodes e os porá perante o Senhor, à porta da tenda da congregação. Lançará sortes sobre os dois bodes: uma, para o Senhor, e a outra, para o bode emissário. Arão fará chegar o bode sobre o qual cair a sorte para o Senhor e o oferecerá por oferta pelo pecado. Mas o bode sobre que cair a sorte para bode emissário será apresentado vivo perante o Senhor, para fazer expiação por meio dele e enviá-lo ao deserto como bode emissário” (16.5-10). “Depois, imolará o bode da oferta pelo pecado, que será para o povo, e trará o seu sangue para dentro do véu; e fará com o seu sangue como fez com o sangue do novilho; aspergi-lo-á no propiciatório e também diante dele” (16.15). “Havendo, pois, acabado de fazer expiação pelo santuário, pela tenda da congregação e pelo altar, então, fará chegar o bode vivo. Arão porá ambas as mãos sobre a cabeça do bode vivo e sobre ele confessará todas as iniqüidades dos filhos de Israel, todas as suas transgressões e todos os seus pecados; e os porá sobre a cabeça do bode e enviá-lo-á ao deserto, pela mão dum homem à disposição para isso. Assim, aquele bode levará sobre si todas as iniqüidades deles para terra solitária; e o homem soltará o bode no deserto. (16.20-22).

 

 

Havia dois animais especiais no Dia do Perdão dos Israelitas. Ambos os animais eram bodes. E em todo o contexto do Velho Testamento, e depois no Novo Testamento, especialmente na parábola das ovelhas e cabras (bodes), tal natureza animal está presente a fim de designar a perversão da natureza humana.

A questão é que esses dois bodes carregavam profunda significação simbólica. O primeiro bode era imolado ao Senhor, e seu sangue era aspergido dentro do lugar Santíssimo, para além do véu que o separava do Lugar Santo; e se fazia isto depois de se haver imolado um novilho e aspergido seu sangue dentro do mesmo lugar separado e impenetrável. Já o outro pode, o que não é sacrificado e cujo sangue não é aspergido no altar, é “’poupado” simbolicamente; e, tal sobrevivência é feita mediante a remetencia de sua existência à peregrinação no deserto, conduzido inicialmente pelas mãos de um homem, o qual o abandonava no deserto a fim de que ele andasse solto, à esmo, pelo nada, em solidão, levando o “pecado” do povo para longe de seus olhos.

Assim, teoricamente, o bode expiatório é o que morre. E o que é “poupado” é o bode “emissário”. Ou seja: ele leva o pecado do povo para longe dos olhares do povo!

No entanto, desde há muito, a própria mente humana decidiu qual era o real bode expiatório, e, por tal decisão, o que prevaleceu é que o bode que morre na expiação é muito menos “expiatório” no imaginário dos que se dedicam ao estudo e ao sentir das Escrituras, do que o bode que é “poupado”, e não morre; o qual, deveria ser apenas o bode emissário, mas que virou expiatório.

A psicologia da alma humana, bruta e pagã, prefere muito mais um Bode Expiatório vivo, do que morto; posto que a morte o retira desta dimensão na qual todos buscam arranjar alguma desculpa para ser!
Entretanto, todos os sacrifícios do Velho Testamento devem ser vistos de modo monolítico em relação à Obra de Cristo. Ou seja: conquanto os sacrifícios fossem variados, e feitos com combinações de elementos animais diferentes — novilho e bode; cordeiro; pombas e rolinhas; manjares e comidas como oferendas; cada um conforme o desígnio simbólico predefinido; — todos eles, à uma, segundo o Novo Testamento, foram sintetizados num único sacrifício, e plenificados e superlativizados em seu conteúdo e significado espiritual definitivo, posto que eram apenas “sombras das coisas que haviam de vir”, conforme nos diz Hebreus.

Jesus, o Cordeiro de Deus, é também tudo o mais; e, Nele, todas as filigranas simbólicas do rito ganharam concreção e significação espiritual permanente e completa. Portanto, irrepetíveis… para sempre!
O que me interessa hoje, entretanto, não é o significado simbólico e arquetípico de todas essas coisas e que em Cristo Jesus tiveram sua corporificação absoluta, última, e consumada. De fato, desejo apenas analisar algumas outras coisas relacionadas ao lugar psicológico-coletivo que o Bode Expiatório cumpre entre todos os povos, e, especialmente, entre os mais religiosos, dentre os quais está o Povo do Cordeiro, os cristãos e os judeus; porém, em cujo meio o ente remidor de pecados por excelência, na prática, não é o Cordeiro, mas sim o Bode.

O interessante, como disse, é que o bode morto, que é o da expiação, não vira psicologicamente Bode Expiatório como acontece com o bode vivo, o emissário. E por quê? Sim, se expiação é feita pela via do derramamento de sangue e da morte, por que, então, o bode que não teve seu sangue derramado é aquele que se tornou, na psicologia humana, o Bode Expiatório?

E mais: como é possível para a consciência que se diz filha da fé no Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, ainda ter, na sua psicologia mais profunda, a presença necessária e indispensável do Bode Expiatório?

Sim, eu pergunto: porque em todos os níveis da vida e da sociedade humana o tal Bode permanece em vigência?

Isto porque não apenas a religião, mas o sistema jurídico, a mídia, a igreja, a moral social, e até a psicanálise, precisam do Bode Expiatório, a fim de fazerem suas transferências de culpa, responsabilidade, e até de auto-engano, no caso do Bode ser feito, por nós, até inconscientemente, como aquele que nos tornou “sua vítima”, ou a razão de nosso erro, pecado, ou culpa.

No meio cristão, conquanto se confesse que Jesus é o Cordeiro Pleno (no qual estavam todos os sacrifícios), é o Diabo quem encarna, ainda hoje, o papel do Bode Expiatório. Entretanto, se Jesus “tira” o pecado (o verbo grego determina uma ação contínua… continua tirando… sempre), por que, então, tem-se que ter um culpado, seja cósmico, seja coletivo, seja familiar ou seja comunitário? Podendo ser na perspectiva social mais ampla, ou mesmo no ambiente pequeno da família ou da igreja? Sim, por quê?

 

O Diabo não tira o pecado; ao contrário, ele é visto como o incita-dor dos pecados e das transgressões. Entretanto, na prática, acabou por se fazer uma estranha dicotomia-esquizofrenizada entre o Cordeiro (novilho, etc…) e o Bode. Sim, porque o verdadeiro bode expiatório, cujo sangue era derramado sobre o altar em aspersão, foi incorporado aos “trabalhos salvíficos de Jesus”. Porém, o bode emissário, acabou por ser projetado sobre a figura do Diabo, que não é mortal, como os humanos, e, por isso, pode levar a culpa de nossos pecados, sendo o responsável pelas nossas transgressões, fazendo nós, assim, com que o Diabo se tornasse, espiritual e psicologicamente, o Bode Expiatório dos cristãos.

A psicologia do Bode Expiatório, isoladamente, é pagã. Ela não era pagã na intenção simbólica da Lei de Moisés, a qual fazia dos dois bodes, bandas de uma mesma coisa; e, de modo mais amplo ainda, parte do Sacrifício Maior, o qual, conforme o rito, ainda que feito de muitos pequenos sacrifícios, era, em-si, um só. Isto porque, ao final, tudo apontava simbolicamente para um Dia de Expiação Absoluta, o qual aconteceu em Cristo.

Todavia, se isolarmos quaisquer que sejam as vertentes dos pequenos sacrifícios, e os tornarmos algo-em-si-mesmos, nessa mesma hora, se dês-constrói o todo do significado; e, por tal via, se passa a crer num mundo espiritual departamentalizado, que é o que gera a doença da relação mecânica com Deus, ao mesmo tempo em que reduz a percepção do indivíduo acerca do todo e de si mesmo, abrindo espaço para a criação de entes vicários, preparados para a remediação e aplacamento das culpas, mas que não produzem a consciência do perdão no indivíduo. Portanto, tal “isolamento simbólico”, seja ele concentrado no Diabo como Bode Expiatório, ou seja ele projetado sobre alguém que cumpra um papel “totêmico” dentro da família, da igreja, ou da sociedade, é algo que acontece contra a Cruz, contra o Cordeiro, e, paradoxalmente, produzindo a revitalização da figura do Diabo, a qual, sendo vista do modo que se a enxerga, é a maior fábrica de seres irresponsáveis, de um lado; e, de outro lado, de seres incapazes de se enxergar; posto que, para esses tais, o pecado não é nunca perdoado ou esquecido — nem o deles mesmos, quanto mais o dos outros —, mas tão somente aplacado pela via da projeção e da transferência para um terceiro que cumpre tal papel por nós.

Em família tal fenômeno acontece muito. Sempre há alguém em todas as casas, que é mantido vivo a fim de perambular com as culpas dos demais membros de tal grupo. É a tal “ovelha negra” da família, a qual, se morre, muitas vezes deixa os demais membros do grupo em total estado de confusão, pois o Bode lhes foi removido, e já não vagueia mais, à solta, levando não apenas os pecados deles, mas a liberdade inconscientemente consentida para carregá-los.

Socialmente falando, numa perspectiva mais ampla, o Bode Expiatório se manifesta como “Síndrome do Gadareno”, que é aquele “possesso” de tudo, de demônios, de homens, de desejos, de medos, de raivas, de rebeliões, e de loucura; podendo dizer que ele é uma “legião”; visto que ele era “muitos”. Daí, uma vez que o Bode Expiatório, o Gadareno, foi curado pelo Cordeiro-Jesus, os que dele se serviam, a população Geresa, ficou sem saber o que fazer, pedindo até mesmo a Jesus que os deixasse. Afinal, agora, todo um sistema coletivo de medo, culpa, fraquezas e raivas, teria que se enxergar, pois não tinha mais o Bode Gadareno para carregar suas impotências, e, para em nome inconsciente deles todos, ser o ente que ia onde ninguém podia ir; e que fazia o que ninguém podia fazer; e que denunciava o que ninguém tinha coragem de denunciar.

Todo Bode Expiatório é um ente Usado!

Assim, quando o Bode Expiatório não é logo indicado como sendo o Diabo, ele, o individuo-bode-expiatório, sempre se traveste ante os nossos olhos como louco, des-compensado, exagerado, imprevisível, pecador coletivo, totem maligno, e que leva as culpas de toda a coletividade.

Desse modo, o Povo do Cordeiro, ainda é, de fato, o Povo do Bode!

Sim, porque no meio cristão prefere-se atribuir ao Diabo todos os pecados humanos, e, culpa-lo por sermos como somos e quem somos, do que nos encararmos no Cordeiro, em Quem, quem eu sou, não é “projetado” ou “transferido” para alguém, posto que Jesus não recebeu a projeção ou a transferência de nossos pecados, mas, muito mais profundamente do que isto, “Ele se fez pecado por nós”. Ou seja: Ele virou eu!

 

Quem, todavia, não entende isto, fica sempre sob a tirania das barganhas com Deus; pois, com “sangue de bodes e touros” tem-se que fazer confissões de culpa sempre; e, além disso, tem-se que arranjar um culpado que nos “cubra”.

Ora, tal processo impede a pessoa de se enxergar e ser curada pela verdade da auto-revelação, e, também, a impede de “desculpar o diabo e o mundo”, olhando apenas para si mesma como sujeito verdadeiro do pecado, e para o Cordeiro, que tira o pecado do mundo, tendo feito isto de uma vez e para sempre, a fim de que seja válido todos os dias.

Quem vive a espiritualidade do Bode precisa de culpados. Sim, porque o Bode não tira o pecado, mas apenas o tira da visão do povo mediante um mecanismo psicológico de transferência e projeção.
Quem pratica a espiritualidade do Bode, esse sempre anda atrás de culpados para tudo, desde que não seja ele. E até quando ele diz que fez, afirma, entretanto, que o que fez por causa da Serpente-Diabo, conforme a defesa psicológica de Adão e sua mulher desde o princípio.

Assim, tal pessoa, nunca fará nenhum processo de verdade libertadora dentro de si mesma; visto que transfere todo encaramento da verdade nela mesma, para fora de si, para um outro qualquer… até para o Diabo.

Tais pessoas, postas em tal paganismo espiritual e psicológico, jamais crescem. Elas são aquelas que se escandalizam sempre; e que buscam culpados; e que os punem; e que se dão por satisfeitas quando aquilo que nelas existe como pecado, aparece sobre outros; pois, assim, a transferência é feita; e o outro passa a vagar pelo deserto, em solidão, levando os pecados de uma comunidade de covardes, que não se enxerga, e que paga até mesmo ao Diabo para que leva a sua culpa, embora isto não lhes traga qualquer perdão ou pacificação definitiva para o ser.

Quando vejo o que acontece no Cristianismo, em todas as suas formas, e, especificamente, dentro das muralhas evangélicas, fica impossível não dizer que somos, ainda, o Povo do Bode.
O Povo do Bode é aquele que nunca se enxerga e nem se encara, preferindo escandalizar-se com aquilo que existe em cada um, apenas para não ter que se converter em si mesmo, e, por tal caminho, encontrar a pacificação definitiva.

Desse modo, sempre que você vir alguém buscando um culpado para si, ou para as desgraças de um grupo, ou família, ou igreja, ou até mesmo para o mundo, sem que isto inclua a própria pessoa e a humanidade como um todo, saiba: tal pessoa é ainda filha da espiritualidade do Bode, posto que o Povo do Cordeiro não se escandaliza com nada humano, e nem busca culpados, pois sabe que se algo foi feito por humanos, é, potencialmente, algo que qualquer um de nós pode fazer; e se não fez na prática, porém, conforme Jesus, já o fez ou faz nos ambientes do coração.

Acho que já disse o suficiente para você pensar por si mesmo. Por isto, vou deixar você só, com seus pensamentos, andando no seu próprio deserto como Bode, até que você creia que o Cordeiro já levou todas as culpas, e que Ele, além de ser Todo o Sacrifício, no caso especifico dos dois bodes, Ele é também aquele que derrama o sangue de nossas contaminações de natureza essencial (assim era vista a natureza do bode), como também é aquele que vagou nas regiões mais desérticas das dimensões, indo ao Hades, e levando para-um-longe-eterno todos os nossos pecados; deixando-nos, assim, livres para nos enxergarmos sem medo e sem busca de culpados; a fim de que, pela revelação da verdade em nós, sejamos curados da cegueira que prefere não ver, para não se ver, do que se ver, ainda que tenha que chorar um pouco.

Decida agora você: De que povo, espiritual e psicologicamente, você é: Do Bode ou do Cordeiro?
 

Nele, em Quem tudo está pago para que os devedores possam encarar a divida e viver de eterna gratidão,
 

Caio