O SENHOR É O MEU PASTOR, E NADA ME FALTARÁ?
O Salmo 23 é lugar comum na poesia da alma. Todos o amam. Ele é cheio de candura e de promessas.
O Senhor é o meu pastor, e nada me faltará!
Quem não quer poder não mais precisar de coisa alguma?
A questão é que a maioria gosta do Salmo porque ele é bonito, e entra na alma como pasto verde é percebido pela ovelha sem comida, vinda do deserto.
Sim, o Salmo 23 mexe com nossas confianças mais infantis, e, por essa razão, nos acalma como se estivéssemos mamando nos peitos de Deus.
A questão é o Salmo só é lido em dois grandes momentos da alma. Ou quando tudo está bem; então, o bem sentido é compatível com a promessa do Salmo do Pastor. Ou quando se está em desespero; então, o Salmo é lido como que para lembrar ao Pastor que nós não nos esquecemos de Suas promessas.
No entanto, a maioria ama o Salmo apesar de achar que ele é irreal. De fato, o Salmo não parece condizer com a Realidade. Parece prometer o que não cumpre.
Será que é assim?
Eu creio que a promessa do Salmo do Pastor se cumpre nas vidas daqueles que conheceram o Pastor do Salmo.
Mas como se cumpre ele se a vida parece gritar quase sempre o contrário?
O que mais se vê à volta é as pessoas se queixando do tanto que lhes falta!
Ouvir as pessoas, sejam elas cristãs ou não, é sempre um exercício de ouvir carências e necessidade.
Ora, se eu mesmo admito isto, como posso afirmar que o Salmo do Pastor tem seu cumprimento para quem conhece o Pastor do Salmo?
Estou eu dizendo que as pessoas não conhecem o Pastor, e por isto é que tudo lhes falta?
Estou eu afirmando que crer no Pastor é garantia de toda sorte de realização de desejos?
Estou eu propondo uma fé que nos dê a certeza da constante abastança?
O que de fato estou dizendo?
O que digo é simples: “O Senhor é meu pastor e nada me faltará” significa não que não tenhamos mais necessidades nesta existência, mas sim que para aquele para quem o Pastor é Tudo, tudo o mais vira Nada.
Assim, nada me faltará porque tudo deixa de me provocar como Falta e Ausência em razão de que a entrega ao Pastor realiza em nós satisfação no espírito, e não na alma e no corpo.
Ora, o corpo é insaciável e a alma é sempre desejosa. O espírito, todavia, só se realiza quando deixa de desejar.
Este é o paradoxo!
Quando se encontra o Pastor nada muda, necessariamente, do lado de fora. Tudo, porém, que nos falta fora, é reduzido a Nada em razão do Tudo que se realiza dentro.
Assim, o cansaço, a falta de ar, a necessidade de direção, a fome, as contradições da existência, o vale da sombra da morte, e tudo mais, dão lugar a pastos verdejantes, águas tranqüilas, a banho de frescor, a perfumes ungidos mesmo que o ambiente esteja carregado de inimigos—que podem até se assentar à mesa conosco—, e as sombras da morte são transformadas em vereda de vida pela Companhia interior do Pastor.
De fato, o chamado do Salmo é para a renuncia dos desejos tirânicos, e a entrega à quietude confiante.
Na realidade, paradoxalmente, o caminho da paz é proporcional a ausência de desejos. Quanto mais desejos, menos paz. Quanto mais paz, menos desejos.
Não é esse, porventura, o significado de morrer a fim de se ganhar a vida, conforme o convite do Bom Pastor?
Quanto mais morte, menos desejo, e quanto menos desejo, mais paz, e quanto mais paz, mais alegria no espírito. Portanto, mais vida.
Assim, bem-aventurado é todo aquele que no espírito pode dizer a si mesmo: “O Senhor é a minha porção e a minha herança.” Ou ainda: “Bem nenhum tenho, senão a Ti somente, ó Senhor”.
Felizes os auto-depojados, pois esses possuem Tudo, no Nada.
Caio