QUANDO A ALMA SE RECUSA…

Os salmos têm a expressão “minha alma recusa consolar-se”. Quando eu era mais jovem achava que isso era uma certa birra da alma e que, de fato, a expressão se vinculava apenas aos momentos em que algo ruim acontece e, por conta disso, a alma cumpria seu luto enquanto a mente tentava impedi-la de sofrer tudo. Hoje sei que não é assim. Existe mesmo um estado em que a alma não aceita nenhum consolo. Nem o consolo da razão, nem o das percepções dos consoladores e nem mesmo a lógica favorável dos fatos que se somam em seu favor. A alma recusa consolar-se… A alma tem vontade própria…é voluntariosa. O mecanismo interior pode variar muito a fim de que esse estado seja mantido. Pode ir da autopiedade à consciência de perdas que fogem aos sentidos da razão ou da lógica da consolação. Pode ir da auto-imposta ignorância à vinculação da alma a alguma forma de culpa imperdoável para o individuo que se assume mau-humor por não gostar dos resultados da existência…ainda que sejam melhores—simplesmente porque a alma tem significações que até o coração desconhece. É quando se deixar consolar parece significar uma traição do ser a um bem que só ele conhece, ao mesmo tempo em que também não tem nem conhecimento lógico de sua existência ou coragem de confessar, no caso de ficar sabendo a causa. Assim, não se sabe o que é porque se ignora, mas ignora-se porque não se quer saber o que é, visto que não se teria naquele momento coragem de admitir. Assim, a alma se encurrala entre a certeza latente e ignorância patente e não tem coragem de buscar conseguir nem chamar pelo nome aquilo que a está matando de carência. Desse modo, o que é latente continua latente e o que é patente—a falta de coragem—continua presente, encurralando o coração no direito de sentir aquela dor, ou de senti-la como direito. Essa impossibilidade de consolação vicia a alma. Se a pessoa não perceber isso em tempo, muitas vezes instala-se um mau humor crônico no ser. Então o indivíduo instaura tal estado definitivamente. Agora o mal sem causa continua sem causa, mas achou uma não causalidade que tem nome—disfarça melhor a sombra—e o apelido dessa angustia passa a ser, nesse caso, mau-humor. Mau-humor é mau-humor. Diz-se: Ele é mau-humorado!—e ponto. Parece que está tudo explicado. A genética e as constituições do DNA da psique parecem assimilar como bode expiatório toda a responsabilidade—e uma vez que se dá nome parece que o bicho se sociabiliza. Na sociedade há lugar para o mau-humorado—pode até mesmo virar graça e humor para os outros—, mas não há lugar para o que “recusa consolar-se”. Muita gente boa de Deus já conheceu esse estado de auto-recusa da alma ante a possibilidade de consolo. Na minha maneira de ver há um tempo em que toda tentativa de consolação faz mal. Há uma estação de recusa de consolação que é sadia—melhor é chamar de luto. Mas quando o estado se cronifica, então começa a se instalar no ser não um mau-humor (mau-humor ainda é um bicho domável e aceita negociar), mas um a-humor: uma atitude de quem perdeu a luz da vida e que mesmo na escuridão não deseja ver, pois, nada muda: o escuro e o claro viram a mesma coisa: a pessoa perdeu o interesse em saber, ver, conhecer, experimentar, se surpreender… Até para se deixar surpreender você precisa ter uma certa predisposição. Aliás, uma das boas maneiras de avaliar o estado de um ser que “recusa consolar-se” é verificar se ele ainda responde a surpresas súbitas. Se “responder”, pode sair do estado a qualquer momento—especialmente se não encherem a paciência da pessoa com a tirania da consolação. Mas se a pessoa de fato se tornou não surpreendível, então a coisa está ficando feia. Nesse caso, é melhor tratar a situação não como uma estação da alma, mas como uma determinação de fixar residência naquele buraco. E aí a pessoa precisa ser acordada a fim de começar a ver que seu direito ao estado daquele sentir acabou. Virou doença. Não tem mais desculpas. Não há mais cumplicidades. A insistência na manutenção do estado inviabiliza a existência e impede o convívio humano e social. Houve, de fato, uma perda de significados existenciais mais profundos que os observadores podem entender ou admitir. Mas é o dolorido quem tem que ficar sabendo que é isto, mesmo que ele ainda não saiba o que é isto ou o que isto é. Mas toda libertação começa e termina na Verdade. Quando nossas significações existenciais se perdem, a única maneira de retomá-las é na presença Daquele que é o único que pode re-significar as coisas em nós. “Eu, porém, olharei para o Senhor”—como disse Miquéias em meio à total desesperança. Caio Fábio