QUE DOCE AMIZADE: A MORTE DE “CAIO FÁBIO”–III

—–Mensagem original—– De: Eurípedes da Conceição Enviada em: sexta-feira, 4 de junho de 2004 11:58 Para: [email protected] Assunto: QUE DOCE AMIZADE: A MORTE DE “CAIO FÁBIO”–III Mensagem: Olá, amigo do coração! É interessante observar que amizade não é algo que se procura de forma objetiva, mas algo que acontece sem projeto, design ou arquitetura montada. A amizade não se semeia, apenas se cultiva. Ela nasce naturalmente como as ervas da terra, e segue o seu ciclo vivencial. Acho que tem sido assim entre nós. Nossa amizade brotou do silêncio, das não-intenções, da não-poesia, da desconstrução. Ela é filha do discernimento, do carinho, da conexão de almas. Você disse que a “bi-polaridade” é-lhe inerente. Mas durante duas décadas esta “bi-polaridade” se escondeu atrás da falsa imagem da “monopolaridade”, disfarçando-se de “unanimidade”. Antes de você aparecer muita gente queria fazer alguma coisa, mas não sabia o que fazer, nem como fazer. De repente você entrou em cena como “Voz clamando no deserto”, e projetaram em você todas as esperanças e ideais messiânicos guardados na gaveta. É sempre assim, quando não se encontra em si mesmo, busca-se se encontrar no outro. E ai do outro se em algum momento não corresponder às expectativas utópicas! Você é alguém que tem e sempre teve algo a dizer! E são poucos os que têm alguma coisa a dizer. No mais, o que se observa é a repetição vazia e mal feita daquilo que já foi dito e precisa ser apenas colocado em prática. Durante esse período suas ações práticas se manifestaram e falaram mais que o seu brilhantismo retórico. Agora sim! Via-se alguém que falava bem e praticava o que falava. Resultado: você era “imbatível”. Era mais fácil concordar do que discordar de você. Afinal, qual o caminho a seguir quando não se sabe onde se deseja chegar? É melhor acreditar na sabedoria dos antigos: “Não há vento favorável para aquele que não sabe aonde vai” (Sêneca). Apesar das “perdas emocionais” sofridas por você nas arenas de enfrentamento, o “ídolo de barro” em que transformaram você veio abaixo. E Quanta gente perdeu o “vento”! Minha alegria é olhar para o “Caio de hoje” e vê-lo destituído daqueles “ornamentos projetivos” que desforjaram o “Caio interior” criado por Deus para ser o que é, e não o que fizeram dele. Nesse sentido, amigo do coração, você está sendo refeito como o “vaso quebrado” nas mãos do Oleiro. E se somos “casas em processo de reconstrução”, não basta contentar-se com o “não ser o que se é, ou “não ser o que se não é”. É preciso “ser-sendo” para “vir a ser”. Você disse: “Apenas sou em Cristo aquilo que em mim mesmo tento ser”. O jogo de palavras é lindo e nunca vi nada igual! Cristo é testemunha que eu não minto, mas, diga-me uma coisa: quando “se é”, e quando “se não é”? Não tenho a pretensão de reeditar Shakespeare, mas há algum vácuo entre “ser” e “não ser”? A única coisa que eu sei é que “eu não sou”! Você é? Aquele que opera em nós tanto o querer como o realizar segundo a Sua boa vontade é o Mesmo que levou Paulo a confessar: “não vivo eu, mas Cristo vive em mim. É também o Mesmo que subjugou o caráter beligerante de Moisés ao dizer “Eu Sou”, fazendo Moisés admitir: “eu não sou”. Ele, sim, é Tudo em nós! Quanto à nossa amizade, nada mais precisa ser dito ou explicado, pois os nossos espíritos já disseram tudo. E se algum dia nossos “gemidos” se tornarem inexprimíveis e a comunicação apresentar “ruídos”, o próprio Cristo se incumbirá de interpretar os signos discernindo as intenções e desejos dos nossos espíritos. No mais, prefiro ficar com as palavras de Oscar Wilde: ”Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante”. Ah, camarada! Isso você e eu temos de sobra! Aprendi com Wilde a escolher meus amigos pela “cara lavada e pela alma exposta”, porque “amigo que não ri junto não sabe sofrer junto”. E você é assim, amigo Caio: cara lavada e alma exposta! Só tem um detalhe: ainda não descobri se você “ri da vida” ou “ri com a vida?!” O mais importante é que a sua amizade me ajuda a descobrir quem sou e nunca me esquecer que a “normalidade” é uma ilusão imbecil e estéril. Naquele que é nós para que sejamos nEle com ou sem explicação, Eurípedes ____________________________________________________________ Resposta: Amado amigo Eurípedes: HOJE chove fino em Copacabana, e torrencialmente em nossas almas! Nele, somos. Em nós, não somos. Por isto, somos o que não somos e não somos o que somos. Assim, quando digo “eu sou”, não falo de mim-em-mim, mas de mim Nele. E quando digo “não sou”, falo de mim-em-mim, não de mim Nele. Esta é a verdade do meu ser, visto que em mim mesmo, nada sou; porém Nele, já sou o que ainda não me tornei em mim mesmo, e muito menos para mim mesmo. Este é o maior ganho existencial que um ser humano pode ter na Terra, e só o tem se o tiver “em Cristo”. Faz alguns anos—não mais que cinco—que entendi a razão de Deus ter me molestado tanto em sonhos entre dezembro de 97 e abril de 98. Minha noites se tornaram grandes projeções de longa metragem arquetípica, e os sonhos se derramaram sobre mim como dilúvio. As comportas do abismo se abriram…e choveu em abundancia sobre a meu ser. Entre esses sonhos havia alguns que eram recorrentes. Entre esses houve um que a leitura de sua carta fez voltar à minha mente Hoje. Eu era Sansão. Cabelos longos. Forte e invencível. Todos os adversários se tornavam fracos. “Sansão” havia destruído até os filisteus, e continuara vivo, enxergando, e imbatível… Então veio uma voz que dizia: “Agora chegou a hora de tu venceres o teu pior inimigo”. Ora, eu era “Sansão”. Então perguntei: “Onde? Quem é ele?” A resposta me foi devastadora no próprio sonho: “Você é seu pior inimigo, e como ninguém pôde lhe abater, sua força se tornou sua fraqueza.” Meu coração saltava de angustia dentro do sonho. “Como será isto?”, era a minha questão. “Você vai cortar os seus próprios cabelos, vai enfraquecer, e vai se entregar…” Então, no sonho, o eu-sansão se levantava, tomava grandes tesouras na mão e se auto-tosava todo, raspando a cabeça, e sentindo as forças se irem e a fraqueza dominar-lhe o ser por inteiro. Acordei suado e angustiado. Era dezembro de 97. Eu estava em Boca Raton, na Flórida. Tentei dormir outra vez e consegui. O sonho voltou, e na mesma noite me visitou três vezes. No dia 28 de abril de 1998 decidi tomar a tesoura e raspar a cabeça do meu ser interior…e me entregar à fraqueza como salvação. No entanto, foi em maio de 1999 que decidi, na pratica e na objetividade do tempo e do espaço, realmente raspar a cabeça como ato de entrega e de submissão visível, de mim para Deus, e num gesto que a ninguém mais concernia. Raspei a cabeça de 15 em 15 dias até quase o final do ano 2000. Enquanto isto, apenas “apanhava”, e os filisteus riam e gargalhavam de minha fraqueza e cegueira. No entanto, no início de 2001, senti na alma que seus cabelos estavam voltando a crescer. Por isto, meu irmão, também como ato simbólico, e cujo valor apenas à mim concerne, deixei, de fato, os cabelos crescerem, como hoje se vê. O que isto significa? Que voltei a ser forte? Não! Jamais! Uma vez que se foi um dia “tosado” nunca mais a força será da mesma “qualidade espiritual”. Hoje a força vem da fraqueza. Antes a fraqueza vinha da força. Antes havia sinceridade e honestidade em tudo o que fazia; e Deus sabe que o que fazia, o fazia a fim de servi-Lo, e que o fazia como sabia e podia; e Ele sabe que o fiz de todo o coração. Portanto, como os outros viam, é uma questão que não é minha. Eu sou a minha própria questão. Cada um é sua própria questão. E eu não sou a resposta nem para mim, muito menos para os outros. Todos terão que se enxergar diante de Deus. No entanto, aquele ainda era o caminho de um adolescente espiritual, não o de um homem em Cristo. A experiência de Deus me levou ao terceiro céu e ao terceiro abismo; e de ambos voltei com espinhos na carne. Entretanto, hoje conheço um outro poder, muito mais excelente que qualquer outro, e que advém de minha certeza de fraqueza, não apenas de sua conceitualização teológica. Antes eu me sabia pecador, mas era santo. Hoje sou um pecador que é pecador-santo e santo-pecador. Não é jogo de palavras. Na alma não existe essa brincadeira. Quanto à nossa amizade, ela simplesmente é, como todas as demais coisas que são. O amor não dá explicação! O amor é dogmático como afirmação de si pelo outros, ou pelo outro. O amor é cego de sua própria visão sine-cera; daí ninguém poder entender o que ele vê nos outros, e nem os outros nele. O amor não é moral, nem ortodoxo. Amor é verdadeiro, e por isto cobre multidão de pecados. Por exemplo, a diferença entre o Antes e este Depois, que para mim é Agora, é que antes não havia cartas entre mim e meus amigos; nem mesmo havia amigos. Havia, sim, uma multidão de admiradores; e entre esses, alguns que tiveram eles mesmos que re-pensar e re-sentir se eram ou não meus amigos, dado ao meu “auto-tosamento”, e que muito os aborreceu. Alguns ficaram—poucos—; outros descobriram que eram amigos, embora antes não o soubessem, nem eu tampouco; e outros estão vindo—digo vindo, não voltando—e se reapresentando a mim, e eu a eles, visto que o que antes havia entre nós era culto a Imagem, ao Totem, a uma semi-encarnação, e que precisava ser relativizada a fim de ser o que realmente é: um ser que não é, a fim de poder ser o que é, e que só o será porque já é em Cristo. Tem gente que pensa que me sinto como alguém que perdeu alguma coisa. Tento explicar que nunca me senti assim. Já insistiram com a tal da “Volta de Caio Fábio”. Expliquei que não era o “Caio Fábio” que estava voltando, mas apenas o Caio, uma carinha que também é Fábio, mas que não quis e não quer ser “Caio Fábio”. O “Caio Fábio” era um bem de consumo de religiosos e de irreligiosos. Era um ser com jeito de homem, mas que estava longe de ter largado a adolescência espiritual. “Menino”, o Caio Fabio não era. Não sei nem se um dia foi, apesar da infância tão rica de beleza e imaginação. Ser homem, todavia, era a vocação dele. Por isso, aquele adolescente teve que perder a si mesmo, a fim de poder ganhar o homem que ele próprio sabia que existia nele, mas que estava impedido de nascer, visto que o útero evangélico não queria deixá-lo livre para vir à luz. Assim, o Caio de hoje é um ser nascido fora de tempo—ektrauma—e que cortou o cordão umbilical que o prendia ao útero das falsas seguranças e mergulhou no mar da Graça. Acho que é a primeira vez na vida que me trato como uma terceira pessoa, e o fiz apenas a fim de ilustrar essa “relação objética” da qual estamos falando. O fato é que me sinto livre. Livre para não ter que ser quem não sou, e também para não ter que explicar quem sou. Assim, depois do Caio Fábio ter pregado muito sobre o Cristo ressuscitado e sobre a Graça de Deus, por fim e por começo, pôde ter a chance de ser objeto dessa mesma Graça e Poder; a fim de poder experimentar a Graça não como quem sabe que precisa dela, mas como quem não pode existir sem ser nela. Ontem para mim foi um dia de muita dor e saudade. Nesse tempo frio o chuvoso o Lukas fica mais vivo do que nunca. Ele adorava o frio tanto quanto eu. Vestia roupas próprias. Ontem, cheio de saudades, vesti um dos agasalhos dele, um da Gap, e que tem um “hood” para cobrir a cabeça. Cobri a cabeça com o hood dele. O cheirinho dele estava no agasalho. Passei o dia abraçado com ele, e sentindo o aroma de suas vestes. Atendi pastores, amigos, escrevi textos, aconselhei, orei, chorei, ri, esperancei, etc… Tudo vestindo o meu filho! Se eu rio? Sim, eu gargalho! Mas nem sempre dá. Quando dá, todavia, não me poupo. Essa é outra coisa que mudou. O Caio Fábio era risonho, mas não sabia gargalhar. O Caio gargalha, mesmo quando dói. Quero agradecer a você de coração a chance que está me dando de ser seu amigo, e também por suas cartas tão carregadas de você mesmo, até quando o papo sou “eu”. Um beijo mais que carinhoso em você, sua esposa, na família, e na querida igreja da Tijuca. Ter encontrado você foi um tesouro para minha alma. Nele, em cuja Graça toda fraqueza é poder, e todo poder é fraqueza, Caio