SANTIDADE SEGUNDO JESUS

 

 

 

 

 

SANTIDADE SEGUNDO JESUS

 

 

 

(Trecho do livro Oração para Viver e Morrer, páginas 38 a 41, por CAIO FÁBIO, 1994; digitação de Dora Ramos)


Vejamos o que Jesus estava nos ensinando quando relacionou o tema da santidade à Palavra e aquilo que Deus faz a nosso favor.

1. O tema da Santidade conforme relacionado à Palavra de Deus (João 17: 17). Para Jesus, a Palavra de Deus era o que poderia nos santificar. E para Ele não se tratava de uma definição de santificação esotérica e mágica. Ele não tinha em mente nenhum tipo de exposição mágica da alma humana à Palavra ao fim da qual a pessoa estivesse mais santa. Na sua mente não passavam aquelas “percepções” de que a mera exposição à Palavra santificava o ouvinte. Para Jesus, ser santificado tinha, na verdade, uma profunda e indissolúvel relação com a assimilação dos conceitos da verdade de Deus, mediante um aprendizado não apenas teórico e teológico da letra da Palavra, mas mediante a vivência da presença de Deus na história em conformidade com o padrão da Palavra de Deus feita verdade no coração.

Tal percepção da relação da Palavra com a vida deve nos comprometer com a confissão de que Deus é santo e com a vivência da santidade. Além disso, ela nos induz também a perguntar por dois conceitos básicos encontrados na prática de Jesus. O primeiro tem a ver com o conceito de Palavra de Deus no entendimento de Jesus. E o segundo é aquele relacionado a como Jesus, à luz de Sua interpretação da Palavra, entendia o tema da santidade.

Comecemos com o que a Palavra significava para Jesus e o que Ele chamava de Palavra de Deus. Inicialmente devemos dizer que Jesus olhava para a totalidade do Velho Testamento como Palavra de Deus (Jo. 5:39). Para Ele a questão nunca esteve entre o que era ou não Palavra de Deus no Velho Testamento, mas, apenas, em como entender, interpretar e aplicar essa Palavra ao contexto da vida humana. Ora, neste sentido Mateus 22: 23-46 é o melhor exemplo disso. Nos três episódios narrados naquele texto, a grande questão não é o que é Palavra de Deus, mas como entendê-la e aplicá-la (Mt. 23:2,3). É por esta razão que nós não vemos na prática de Jesus querelas teológicas, na perspectiva seletiva a respeito do que deveria ser retirado do Velho Testamento para ser abandonado ou reforçado na prática dos seus discípulos (Lc. 24:45). Pelo contrário, para Ele, o Velho Testamento dava uma base e finalidade histórica (Lc. 4:16-19). Sua missão tinha suas raízes mais profundas nos sonhos dos profetas (Lc. 24.27). Seus sofrimentos e glórias já tinham sido vistos e saudados desde o início da caminhada histórica do povo de Israel (Lc. 22.36,37). Ele próprio tinha sido alegria existencial e a inspiração dos patriarcas e profetas (Jo. 8.56). Sua mensagem não era nova, mas o aprofundamento da revelação já existente (Mt. 22:34¬40; Lc. 10.25-28). Sua expectativa de aceitação e rejeição do seu ministério se baseava naquilo que a Palavra lhe autorizava a esperar (Mt. 13.14,15). A própria maneira sombria pela qual ele anuncia sua morte se fundamenta numa interpretação teológico-ideológico da freqüente e histórica atitude do povo de Israel, conforme descrita nas Escrituras (Lc 13.31-35). Para Ele, o Gênesis de 6 a 11 era digno de confiança histórica (Mt. 24.38-39). Além disso, o modo pelo qual ele interpretava a saúde relacional do homem e da mulher se fundamentava na originalidade do plano da criação conforme revelado no Gênesis (Mt. 19.4-6). A conexão entre pecado e queda, bem como entre ideal e realidade era para ele extraída da Escritura (Mt. 19:7-9).

Até mesmo textos do V.T. de ares místicos foram encarados por ele como absolutamente simples e reveladores do modo pelo qual Deus age na história (Mt. 16.1-4). Assim, tudo que Jesus fazia tinha seu fundamento no Velho Testamento. Seu território ministerial (Mt. 4.12-17), o exercício das curas (Mt. 8.16-17), a pregação (Lc. 4.16-19), o ensino (Mt. 6-7) e a atitude de discrição e singela misericórdia (Mt. 12.15-21) estavam fundamentados no Velho Testamento. Seu sermão do Monte era, em síntese, a pregação do sonho dos profetas. De fato, o Sermão do Monte é a condensação das utopias dos profetas. Aquilo que eles não tinham conseguido chamar de História, Jesus chamou Vida.

Concluindo, nós poderíamos dizer que, literalmente, toda a Escritura tem em Jesus sua afirmação: o Pentateuco (Mt. 22.23-29), os livros históricos (Mt. 12.1-7), os poéticos (SI. 118.26;22.8), as sabedorias (Mt. 12.42) e os profetas (Mt. 26.31). O próprio fato das genealogias de Jesus estarem incluídas nos evangelhos com todas as ambigüidades “morais” às quais elas estavam sujeitas, pois Jesus descende de gentios (Mt. 1.3,5), adúlteros (Mt. 1.3-6), prostituta (Mt. 1.6), homicidas (Mt. 1.10) e ancestrais cheios de sincretismos (Mt. 1.7-10), nos mostra que, propositalmente, Ele quer estar ligado à História do Velho Testamento (Jo. 5.39).

Isto posto, devemos agora relacionar a Palavra com o fato de Jesus ter dito que deveríamos ser santificados por ela. Ora, nesse caso nossa visão do escopo e da profundidade da santificação muda radicalmente. Ser santo é buscar ser essencialmente humano, ser parte da história porém vivendo a presença de Deus no mundo (Lc. 7.39). Ser santo tem relação com a busca de uma sociedade sem desigualdades e onde os mais fracos jamais sejam despojados (Mt. 23.14). Ser santo é viver a alegria do conhecimento de Deus com oração e fé e é sofrer as angústias da história como resultado de nossos vínculos com um padrão que o mundo não conhece (Mt. 11.25-27; 5.11-12). Ser santo é ser separado, não dos pagãos; como Israel equivocadamente tentou, mas é viver a diferença radical dos valores do Reino em meio às sociedades pagãs (Mt. 5.43-48). Ser santo é ter na paixão dos profetas a motivação existencial para o nosso enfrentamento histórico do mal (Lc. 13.33). Ser santo é, mesmo em dia de sábado, trabalhar a favor da santidade de vida (Lc. 14. 1-6). Ser santo é colocar o valor da vida acima do valor das coisas, mesmo aquelas mais “sagradas” (Mt. 23.23). Ser santo é entender que o altar diante do qual Deus nos quer ver prostrados não é apenas o altar do templo, mas também os altares ensangüentados dos corpos dos nossos irmãos de história e que estão caídos nas esquinas da vida (Lc. 10.25-37). Ser santo é viver a misericórdia no agitado ambiente secular, ao invés de viver a quietude alienada do ambiente religioso que não tem janelas para a história da dor humana (Mt. 9.9-13). Ser santo é acreditar que a santidade não se polui quando toca com amor, aquilo que é sujo (Mt. 8.1-4; Mc. 7.1-23). Ser santo é não temer ser mal interpretado pela mente daqueles que estão sujos de pretensa santidade.(Mc.7.5;Lc.7.39).


Para Jesus ser santo é ser verdadeiro para com a nossa condição humana: é ter a coragem de chorar em público (Jo. 11.35), de admitir perdas e saudade (Jo. 11.36), de gritar de dor (Mt. 27.50), de confessar depressão (Mt. 26.38), de pedir ajuda emocional (Mc. 27.50), de se confessar cansado (Jo. 4.6), de dizer tenho sede (Jo. 19.28), de confessar dificuldades familiares (Mc. 3.21;Jo. 7.1-9), de admitir que a privacidade é um direito e uma necessidade de sobrevivência (Mc. 6.30-32,45,46). Ser santo é admitir que o amor pode ser exercido na perspectiva da disciplina física (Mc. 11.15-19) e que o “desabafo” é um sadio escape quando se está farto de estupidez (Lc. 11.31-32). Ser santo é continuar sendo de Deus mesmo em meio ao mais profundo e inexplicável silêncio divino (Mt. 27.46).

Desse modo, não santificamos a Deus quando falamos o seu nome enquanto furtamo-nos à verdade e praticamos todas aquelas coisas que a Palavra de Deus decreta como abominações, ainda que disfarçados pela nossa pseudo-moralidade. Também não santificamos a Deus com a nossa teologia reducionista e domesticadora da divindade, que pretende reduzi-lo a dogmas, ritos, liturgias e espaços. Também não santificamos a Deus com a nossa noção de sermos secretários da divindade, achando que sabemos tudo sobre Ele, achando que discernimos toda a Sua vontade, como se tivéssemos todas As manhãs uma entrevista marcada com Ele, na qual nos mostrasse detalhadamente todos os caminhos da vida. Blasfema contra Deus quem não pode dizer como Paulo em Romanos 11:33-36, que ninguém jamais conheceu ou penetrou na totalidade dos seus caminhos. Blasfema contra Deus quem não se abriu para o ministério de Deus. Não santificamos a Deus quando todo o nosso interesse em relação a Ele é sermos “ajudados”. Ofendemos a Deus não somente pela negação do Seu poder, mas também pela súplica egocêntrica. Não se santifica a Deus quando se estabelece um lugar para ele morar, caindo nas teologias pagãs do “lugar santo”. Ora, lugares só são santos quando santificados pela presença de homens santos que cu1tuam ao Deus Santo. Não se santifica o nome de Deus, quando se viola a sua imagem e semelhança nos seres humanos que nos cercam. Não se santifica a Deus, onde os pequenos são apenas suportados e os grandes são preferidos. Não se santifica a Deus nas nossas ruas cheias de meninos nus e crus e, que perambulam como cães virando latas de lixo. Não se santifica a Deus quando a Igreja se toma um “bastião” do poder religioso, capaz de favorecer influências políticas mundanas e iníquas. Não se santifica a Deus quando nossa esposa não é santificada pelo nosso convívio e os nossos filhos e amigos não provam o bem fazejo resultado da nossa ligação com Deus.

2. A obra redentora de Jesus conforme relacionada ao tema da santidade: “E a favor deles eu me santifico a mim mesmo…” (v.19) A segunda idéia à qual o tema do Pai Santo e da santidade está relacionada em João 17 é a obra salvífica de Jesus. Isso porque a santificação que o Pai santo pede dos Seus filhos só pode ser vivida em Cristo. É por isso que Jesus, conquanto nos desafie concretamente à vivência da santidade, nos faz provisão espiritual para que tal santificação seja uma possibilidade. Sem tal provisão espiritual a vida cristã é simplesmente impossível. Talvez essa seja justamente a nossa principal falha histórica: tentar viver a santidade para a qual somos chamados, por nossa própria conta e meios. Talvez o mais terrível exemplo disso na atualidade esteja exatamente demonstrado na queda dramática e escandalosa de pregadores, cujos projetos teológicos e pessoais pregam comportamentos de santidade homocentrica. Ora, a única diferença entre legalismo e santidade é que o primeiro é esforço humano e o segundo é obra do Espírito.

Por que estou dizendo isso? Simplesmente para mostrar o que Jesus dissera quando afirmou que a “favor dos discípulos Ele se santificava a si mesmo”, era muito mais do que poesia sacerdotal. De fato, tratava-se da mais fundamental afirmação de segurança espiritual que a Palavra de Deus nos oferece. É sabido por todos nós, que Jesus Cristo é a única provisão de Deus para a salvação humana. E na minha maneira de ver, salvação e santificação andam extremamente ligadas. Para entendermos o tema da santificação, precisamos entender primeiro o tema da salvação e aquilo a que ela está ligada.
Ora, Deus está redimindo hoje o espírito humano de modo forense e judicial, por causa da obra de Jesus na cruz. No entanto, tal salvação também traz consigo o anúncio das boas-novas de um processo redentivo, multidimensional, que Deus continua a realizar, atingindo variados segmentos da nossa própria vida. É isto que Paulo diz num texto que tem criado problemas na mente de muitos irmãos: “… desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor, porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar segundo a sua vontade” (Fp. 2.13). O fato de a salvação precisar ser desenvolvida, não significa que ela tem de ser conquistada. Nós só desenvolvemos aquilo que temos, e nós temos a salvação, definitivamente, pela fé na Graça de Cristo. Tal salvação, precisa apenas expandir-se, corporificar-se e multidimensionar-se na existência humana. É também por isto que Paulo continua apresentando alguns exemplos básicos de como fazer a salvação “crescer”: “sem murmurações nem contendas”. Ora, isto tem a ver com a nossa interioridade curada e com as relações que precisam ser reconciliadas para que, na História, nos tornemos “irrepreensíveis e sinceros filhos de Deus, e inculpáveis no meio de uma geração pervertida e corrupta”.
A salvação judicial e forense, por meio da fé em Jesus, deve desembocar num processo de humanização, tendo Jesus como protótipo, conforme diz Romanos 8.29 “Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes a imagem de seu filho, a fim de que Ele seja o primogênito entre muitos irmãos”. A salvação que se recebe pela fé, desse momento em diante, entra na fase de desenvoltura dentro de cada pessoa para quem Jesus é o Salvador, o projeto, o protótipo, a referência e o Mestre. Isto porque o plano de Deus é que esta salvação se multidimensione em cada um de nós, de modo a caminhar na direção de tornar cada pessoa “conforme a imagem de seu Filho, para que Ele seja o primogênito entre muitos irmãos”, os quais são parecidos com Ele.
Assim é que, metafisicamente, aos olhos de Deus, nós somos uma obra acabada. Sua graça nos fez totais aos Seus olhos, de modo que judicial e forensemente estamos justificados. Mas historicamente falando, porém, veja o que Paulo diz em Filipenses 3.12,13: “Não que eu o tenha já recebido ou tenha já obtido a perfeição; mas prossigo para conquistar aquilo para o que também fui conquistado por Cristo Jesus”. No versículo 16 diz ainda: “Todavia, andemos de acordo com o que já alcançamos”. O versículo 15 ele já havia dito: “Todos pois que somos perfeitos, tenhamos este sentimento”. Os dois elementos (salvação-forense-judicial versus salvação-histórico-processual) estão presentes nestas citações.

Veja o que se diz acerca da salvação forense-judicial: “Nós que somos perfeitos” (v.15). Ora, tal afirmação só é possível em Cristo. Fora dele, nenhum de nós, inclusive Paulo, é imperfeito e inacabado.

Veja agora o que se diz sobre a salvação histórico-processual: “não tenho obtido a perfeição…mas prossigo para conquistar…todavia andemos de acordo com o que já alcançamos…” (v.12,13,16).

Assim é que, forense e judicialmente estamos perfeitos em Cristo.
Historicamente
, porém, estamos ainda a caminho, de modo que a justificação já realizada e acabada em Cristo não deve estagnar o processo histórico de continuidade de nossa salvação. Com relação a este último aspecto, Paulo utiliza em Filipenses três palavras e expressões processuais do tipo “prossigo”, “avançando”, “andemos”, “não alcancei”, e “tenho um alvo”. São palavras e expressões que nos colocam a caminho e que não permitem que a justificação se engesse no moralista religioso ou se apóie na graça barata.

Ainda em Filipenses 3, Paulo diz que a salvação, enquanto obra a ser desenvolvida, implica num processo histórico, pois tem relação com três tempos: passado, presente e futuro. Ele diz que as “coisas que para trás ficam”, para trás ficam; que as coisas do presente ao presente pertencem (“não que eu tenha alcançado”) e que as coisas do futuro, “diante de mim estão”. Ora, isto é precisamente o que compõe a História: presente, passado e futuro. Portanto, tal salvação-santificação tem que se desenvolver aqui, na História.

Paulo também afirma que este processo histórico pode ser chamado de processo de “cristificação”. Esse processo é dinâmico. Ele diz: “…não obtive, porém prossigo…”. Todos nós podemos alcançar tudo quanto Deus colocou à nossa disposição.

Ora, aqui neste ponto nós voltamos objetivamente ao tema da santificação, e com uma pergunta. Isto porque uma vez que os conceitos básicos relacionados com a salvação estão postos, nós devemos perguntar o que isso tem a ver com a nossa santificação. Não devemos nos esquecer de que em João 17, texto de nosso estudo, o Senhor Jesus disse que Ele mesmo se santificava a nosso favor. Ou seja: há algo da vicariedade de Jesus na nossa santificação também. É bom afirmar isto, pelo simples fato de que há muito legalismo com relação à perspectiva da santificação. Na maioria das vezes, a santificação tem sido entendida como sendo o “lado humano” da salvação. Ou seja: “Cristo nos salvou e cabe a nós tornarmo-nos dignos da salvação através da santificação”. No entanto, não há santificação possível que prescinda também da graça santificadora de Deus. Com isto não estou dizendo que a santificação não implica em compromissos éticos concretos na história. Se assim fosse, eu estaria negando tudo o que escrevi a respeito da necessidade das nossas vidas confirmarem a revelação da Palavra. Como diz Willian Barclay: “o cristianismo, como também o judaísmo, é essencialmente uma religião ética. Por isso se deve dizer que o cristianismo insiste que o ser humano deva viver um certo tipo de vida e ser um certo tipo de pessoa” (William Barclay; “The Mind of ST. Paul”, pág 75).

Do mesmo modo que o Novo Testamento ensina que a salvação é fruto da graça de Deus realizada e consumada em Jesus Cristo, ele nos ensina também que a realidade da santificação se alimenta da mesma fonte de eficácia espiritual: a Graça. A santificação resulta de uma vida que antes de tudo se viu morta em Jesus Cristo para o pecado (Rm. 6.11-14). Na realidade, a questão-chave da santificação se resume na expressão “estar em Cristo”. Estar em Cristo significa TUDO na vida cristã. Literalmente, não há qualquer progresso humano possível, fora desse estar “em Cristo”. Neste sentido, há uma diferença fundamental entre estar “em Cristo” e estar “na igreja”. Obviamente acredito que estar em Cristo significa também estar na IGREJA de Cristo. A questão, no entanto, é que a Igreja de Cristo se misturou com aquilo que nós chamamos de Cristandade. Foi precisamente nesse sentido que Santo Agostinho disse “que a igreja tem muitos aos quais Deus não tem e que Deus tem muitos aos quais a igreja não tem”. Para Santo Agostinho, a “igreja” não era necessariamente a IGREJA. Podia ser apenas uma deformação institucionalizada daquilo que Jesus sonhara.Isso porque, Santo Agostinho quanto nós, acreditamos que quem de fato está em Cristo está na IGREJA, e na comunhão da fé que a verdadeira Igreja promove e para a qual nos convida. No entanto, há aqueles que estão na IGREJA e que não conseguem “entrar nas igrejas”. Esses são cristãos, mas não suportam aquilo que nós chamamos de “cristianismo”.
Descrevendo esse afastamento do cristianismo em relação à IGREJA conforme exposta no Novo Testamento, Jacques Ellul afirma em “Subversion of Christianity” o momento histórico em que essa mudança teve e tem lugar. O momento é exatamente quando sai-se da perspectiva orgânico-qualitativa de igreja para a perspectiva organizacional-institucional (por exemplo, quando a comunidade da fé vira “ismo”). Nesse caso, é como se uma fonte de água viva fosse transformada em um canal de irrigação mais ou menos regulado e estagnado, até ao ponto em que a água da fonte original torna-se totalmente poluída na medida em que ela vai sendo “mecânica e artificialmente trabalhada” pelo sistema de distribuição.

De fato, o grande segredo da santificação, como já dissemos, é estar em Cristo e tendo sempre a coragem de verificar se estamos mesmo Nele (II Co. 13.5) Este é o princípio essencial à santificação e às demais virtudes da fé cristã. Do ponto de vista do Novo Testamento “em Cristo” nós temos:

1. Consolação: “Se há, pois, alguma exortação em Cristo, alguma consolação de amor, alguma comunhão do Espírito, se há entranhados afetos e misericórdias, completai a minha alegria…” (Fp. 2.1,2).

2. Ousadia: “Pois bem, ainda que eu sinta plena liberdade em Cristo para te ordenar o que convém ” (Fm 8).

3. Liberdade: “E isto por causa dos falsos irmãos que se intrometeram com o fim de espreitar a nossa liberdade que temos em Cristo Jesus, e reduzir-nos a escravidão” (Gl. 2.4).

4. Vitória contra a mentira: “Digo a verdade em Cristo, não minto, testemunhando comigo, no Espírito Santo, a minha própria consciência” (Rm. 9.1).

5. Promessas: “…a saber que os gentios são co-herdeiros, membros do mesmo corpo e co-participantes da promessa em Cristo Jesus por meio do evangelho” (Ef. 3.6).

6. O AMÉM de Deus à vida: “Porque quantas são as promessas de Deus tantas têm nele o sim; porquanto também por ele é o amém para a glória de Deus, por nosso intermédio” (11 Co. 1.20).

7. Somos santificados: “À igreja de Deus que está em Corinto, aos santificados em Cristo Jesus, chamados para ser santos, com todos os que em todo o lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso” (1 Co. 12).

8. Somos sábios: “Nós somos loucos por causa de Cristo, e vós sábios em Cristo; nós fracos e vós fortes; vós nobres e nós desprezíveis” (Co. 4.10).

9. Somos novas criaturas: “E assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura: As coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (II Co. 5.17).

10. Somos chamados: “Porque o que foi chamado no Senhor, sendo escravo, é liberto do Senhor; semelhantemente o que foi chamado, sendo livre. é escravo de Cristo” (I Co. 7.22).

11. Temos o mais elevado objetivo: “Prossigo para o alvo, para o
prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus” (Fp 3.14).

12. Apesar de tantas vezes sermos imaturos, somos salvos:”Eu. porém, irmãos, não vos pude falar como a espirituais; e, sim, como a carnais. como a crianças em Cristo”(I Co. 3.1).

13. Estamos estabelecidos: “Mas aquele que nos confirma convosco em Cristo, e nos ungiu, é Deus” (11 Co. 1.21).

14. Podemos andar em vitória: “Ora, como recebestes a Cristo Jesus, o Senhor, assim andai nele” (Cl. 2.6).

Tudo isso parece simples demais para as mentes mais sofisticadas e teológicas, as quais, por certo, até “pularam” esta série de 14 afirmações decorrentes de se “estar em Cristo”. No entanto, as coisas acima mencionadas são seríssimas. Se não veja: se elas são assim tão simples, por que há tão poucas evidências dessa santificação em nosso meio? Por que tanto pecado, imoralidade, roubo, mentira, descrença, administração iníqua dos bens da igreja por parte de líderes? Por que tanta traição, falsidade, calúnia, inveja e maldade? E mais: por que isso acontece tão intensamente dentro da igreja quanto acontece fora dela? E mais: por que os grupos cristãos mais legalistas são, tantas vezes, as mais desgraçadas vítimas desse fracasso?

Talvez tudo isso aconteça pela simples razão de que aquilo que o evangelho nos convida a ser tem íntima ligação com a Graça de Deus. E, nesse sentido, aquilo que o evangelho oferece é intolerável e inaceitável. Você julga que há alguma coisa aceitável na graça? Não! As pessoas não gostam da graça justamente porque a graça não lhes dá controle sobre a situação. A graça não depende de mim. Ela extrapola meu domínio. Não há nada de seguro no fato das pessoas condenadas à morte estarem livres dela porque um desconhecido e Estranho Soberano simplesmente as livrou disso, sem lhes dar qualquer razão justificável para tal ato. A graça é totalmente arbitrária: “Eu serei gracioso para quem Eu quiser ser gracioso e misericordioso para quem Eu quiser ser misericordioso…” Nesse caso não há nada que possamos fazer: não há sacrifícios, ritos, orações, atos de bondade, busca de sabedoria, ascetismo moral e religioso, etc. Nada pode ser feito para se ter controle sobre a graça. Não há trocas a serem feitas, e assim nos sentimos extremamente humilhados na nossa incapacidade de “justificar” a relação, pelo menos por um pouco. A graça exclui tudo aquilo que nos garante segurança. Nossos sacrifícios não são aceitos, nossos moralismos são ridicularizados, nossas liturgias são chamadas de cansativas, e nossas justiças próprias são chamadas de trapos de imundícia. Pode haver algo mais afrontoso para a natureza humana do que esse estado de absoluta impotência no qual a graça coloca a todos nós? Não! E por isso que o legalismo é o supremo ato de rebelião contra Deus. O legalismo é mais blasfemo do que o desconhecimento de Deus (Rm. 2.12-16). O sincretismo, o paganismo e a promiscuidade suscitaram menos a ira de Jesus do que o legalismo que lutava contra a graça. Todos nós ficamos possuídos por um desejo obcecante de justiça própria. Temos obcecante desejo por nos mostrar justos e retos. Nossa maior idolatria é aquela na qual nós mesmos somos os “nichos” e os “santos” do nosso culto moral. Nosso maior prêmio é sermos vistos como justos pela nossa comunidade. Ora, nesse sentido, nós, “religiosos”, somos menos susceptíveis à graça de Deus do que as meretrizes e os pecadores da nossa sociedade? Eles já estão “como canas quebradas e como torcidas que fumegam” (Mt 12.20). Eles já perderam a chance de lutar pela sua justiça própria. Foi por isso que eles foram os mais receptivos à graça de Deus durante o ministério de Jesus.
Eu quero dizer que a única maneira de receber o beneficio da graça de Jesus que nos santifica é mediante a aceitação da nossa total incapacidade de justificar o que Deus fez e está fazendo em nós. Somente quando nossas armas estão completamente depostas é que o Espírito pode atuar em nós, a fim de nos fazer entrar no profundo processo da santificação. Cristo já fez tudo na Cruz. O que nos resta é exorcizar os demônios das nossas pretensões religiosas, a fim de sermos suficientemente simples para receber aquilo que só os humildes de espírito admitem: a graça de Deus.


Paginas 38 a 47 de ORAÇÃO PARA VIVER E MORRER, publicado em 1994; e escrito em 92; por Caio Fabio.